Topo

Brenda Fucuta

Coletoras de lixo na pandemia: a gente trabalha com fé ou fica sem emprego

Brenda Fucuta

13/06/2020 04h00

Da esq. para a dir.: as coletoras de resíduos Valéria e Maria

Alguns pensadores da vida contemporânea acreditam que muitos profissionais pouco valorizados antes da pandemia passaram a ser vistos com outros olhos pelas pessoas, caso dos enfermeiros, cuidadores, motoboys e faxineiras.

Ganham pouco, infelizmente. Mas, sem eles, ficou muito claro para todos que a vida seria muito pior. Nesse quadro de profissionais, estão os funcionários da limpeza urbana. O que a gente até hoje chama, erroneamente, de lixeiros. Uma das profissões mais desprezadas do século 20. Na minha geração, era comum vê-los como a última profissão desejada para os filhos. Imagine, então, o que teria acontecido se os coletores de lixo também tivessem se isolado nesta crise. Quão caóticas ficariam nossas casas, prédios e cidades sem o recolhimento dos resíduos que produzimos –1 quilo em média, por brasileiro, a cada dia.[1]

Quis entrevistar coletores para saber como eles estavam lidando com a situação causada pela Covid-19. Tive a sorte de conversar com duas mulheres, funcionárias de uma empresa de coleta de resíduos da região de São José dos Campos, no interior de São Paulo. Maria Claudia Lima Santos, 40 anos, e Valéria Aparecida Ramos da Silva, 41, trabalham juntas na coleta seletiva, de segunda a sábado. Não mudaram sua rotina de trabalho desde o começo da pandemia, mas adotaram novos cuidados pessoais de higiene para proteger suas famílias.

Veja também:

O que ficou diferente na vida de vocês por causa da Covid-19?

Maria: A gente ganhou álcool gel, galão de água e sabão para trabalhar no caminhão. Ganhamos máscara também, mas já avisamos a empresa que não dá para trabalhar de máscara.

Valéria: Não dá para correr de máscara, a gente fica sem respirar.

Vocês devem ficar com medo de levar o vírus para dentro de casa…

Valéria: Ficamos, claro. A gente mexe com muito lixo porque as pessoas não separam direito o orgânico do reciclável. Mas não tem jeito. Ou a gente trabalha com fé ou fica sem emprego.

Maria: É como ela falou. Temos medo, mas temos que trabalhar. O que a gente tem feito é cuidar bastante da higiene. Quando chega em casa, nem senta e nem abraça os filhos antes de bater o sapato no pano, tirar a roupa e tomar banho.

Vocês têm filhos. Quem cuida deles enquanto vocês trabalham?

Maria. Minha filha de 17 cuida da menina de oito anos.

Valéria: Meu filho mais velho tem 18 e trabalha com o pai. A caçula tem nove. Eu pago uma menina para olhar ela para mim.

Eles têm saído de casa ou estão em isolamento social?

Valéria: Meu filho mais velho sai com o pai. Por sorte, os dois estão com trabalho. A menina não sai de jeito nenhum.

Maria: Minhas filhas também ficam em casa me esperando.

O trabalho de vocês é tão essencial que vocês não puderam ficar em casa, sem trabalhar. Mesmo assim, imagino que tenha muito preconceito contra os coletores.

Maria: Tem gente que respeita, mas tem gente que chega a tampar o nariz quando a gente passa. E o nosso caminhão é de reciclados, não fede.

E você, Valéria, sofre algum tipo de preconceito?

Valéria: Por incrível que pareça, o maior preconceito é da família. Tenho parentes que dizem que mulher não devia fazer serviço de homem. Aí eu digo que eu sou uma mulher moderna [ri]. O que adianta trabalhar atrás de um computador se eu não gosto de jeito nenhum da área administrativa?

Você já trabalhou na área administrativa?

Valéria: Sim, eu sou formada em administração, trabalhei na contabilidade de um departamento de recursos humanos por um tempo. Não gostei. E eu gosto da minha profissão de coletora. É cansativa, mas tenho preparo físico e me sinto bem.

Vocês fazem algum treinamento físico para o trabalho? Precisa?

Maria: Eu jogo futebol.

Valéria: Eu faço musculação. Se não fizer, você não aguenta. Detona pé, detona joelho de tanto subir e descer do caminhão. Além da prática e da habilidade, a gente tem que estar alongada. E ter garra, porque não é fácil.

O que você considera mais difícil?

Valéria: Olha, o mais difícil é ter que correr muito. Por isso, tem que ter preparo físico. E a gente trabalha no meio de muitos homens também.

 Vocês me contaram que, na turma de vocês, tem quatro colegas homens. Tem machismo no meio?

Maria: Ah, tem motorista que não gosta de trabalhar com mulher coletora porque a esposa tem ciúme. E eles falam isso pra gente. Mas a gente dá conta da corrida e de pegar peso do mesmo jeito ou melhor ainda que os homens.

E os filhos, como enxergam a profissão de vocês?

Valéria: Eu quis muito ser funcionária dessa empresa, ter um emprego mais estável. Meus filhos gostam.

Maria: Quando eu fui contratada, contei para as minhas filhas que ia trabalhar no caminhão de lixo. Lá em casa, tudo é conversado. Minha novinha ficou louca, quis porque quis vir no meu trabalho e conhecer tudo. Na escola, ela diz para os coleguinhas que a mãe trabalha no caminhão. Tem o maior orgulho.

 

[1] Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil/Abrelpe

 

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

Blog Nós