Por que, aos 50 e poucos, peguei estrada num motorhome com minha mãe de 80
Brenda Fucuta
09/05/2020 04h00
Nós duas, na Serra da Canastra
Vou contar uma história sobre minha mãe. Mentira. Uma história sobre nós duas. Há dois anos, decidi que nós precisávamos de um tempo juntas. Só nós. Queria conhecer melhor minha mãe, queria que ela me conhecesse mais – afinal, vivemos muito mais separadas do que juntas. Ela topou. Iríamos fazer uma viagem.
Eu tenho 57 anos e, há 40, moro distante da minha mãe. Chegamos a ficar semanas sem nos falar, na época em que nem todo mundo tinha telefone em casa (para quem tem menos de 30: sim, isso existiu). Hoje, conversamos bastante pelo celular e nos vemos de duas a três vezes por ano. A família é meio cigana e já morou em vários lugares antes de se instalar no interior do Maranhão.
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Minha mãe tem 82 anos. Uma geração nos separa. Ela foi uma mãe protofeminista: em casa, não lavei mais louça do que meus irmãos. Mesmo assim, nossos valores vez ou outra se colidem embora nossas opiniões tenham a mesma raiz: nosso mundo ideal não discrimina velhos, gays, mulheres. Para as duas, uma regra de ouro é "quem tem mais ajuda quem tem menos". Essa é a nossa base ética, o resto é filho do tempo de cada uma.
Então, em 2017, aluguei um motorhome, sonho de toda a vida da minha mãe. Chegamos à loja do Vandão, em Salto, perto de São Paulo, para pegar o veículo e era tudo que a gente pensava dele: cama (de casal), cozinha com fogão, geladeira e micro-ondas, TV com parabólica (não pegou, mas tudo bem), banheiro com aquecimento a gás. E uma surpresa: máquina de lavar roupa! Uma casinha que viajava, tem coisa mais legal?
Durante 15 dias, rodamos, comemos, nos banhamos e dormimos no motorhome. Pernoitamos em posto de gasolina, em camping, em praça de cidade pequena e estacionamento. Quando chegamos a Tiradentes, Minas Gerais, estava tendo um encontro monstruoso de motociclistas, o Bike Fest, mais de 30 mil pessoas. Muitos deles acampados no mesmo camping onde ficamos. Show de rock em volta da fogueira, muita roupa preta no estilo Hells Angels, muita cerveja. E nóix. Thelma e Louise. Mais velhas e sem tanta bebida (infelizmente).
Tivemos alguns pontos baixos: no Parque da Serra da Canastra, barbeirei e atolei o carro na estradinha. Ficamos sem gás para o banho. Perdemos dois dias de viagem consertando o freio. De resto, só alegria. O tempo permaneceu lindo durante toda a viagem pelo Lago de Furnas, por Brumadinho e pela Serra da Canastra, em Minas Gerais. Eu tomei banho em todos os rios pelos quais passamos, e eram muitos. Minha mãe trouxe mudas de todas as plantas que gostou, e eram muitas.
Em determinado momento da viagem, perguntei se minha mãe queria dirigir. Embora adore dirigir, ela tinha parado com medo de provocar um acidente. Se existe uma imagem para simbolizar uma mulher empoderada, era a da minha mãe com uma mão ao volante, o braço esquerdo apoiado na janela, o vento no rosto. Foram 50 quilômetros de pura alegria para ela.
Nos estranhamos um pouco no começo. Quem faz o café? Por que ela não quer dormir na cama de casal? Onde guardamos a louça? Duas mulheres, acostumadas a gerenciar suas casas, agora espremidas em poucos metros e tendo que conciliar métodos de trabalho. Aos poucos, a rotina foi se acomodando. A convivência se assentou em um ritmo fácil e leve. Estávamos em paz, abertas para as belezas que víamos, dispostas a curtir o cafezinho nas cadeiras de praia viradas para o pôr-do-sol. Inspiradas e um pouco orgulhosas da aventura que tínhamos encarado. Sem preocupações com filhos, sem adivinhações de futuro. Ficamos muitas vezes em silêncio. Nada precisava ser dito.
Acho que, depois de um tempo, percebemos que aquela seria nossa primeira e única viagem juntas e sozinhas. Vieram sentimentos de tristeza e de alegria alternados. Sabíamos que tínhamos passado por uma experiência muito especial. A viagem não teve o poder de nos transformar em melhores amigas. Ou melhores mãe e filha, como talvez eu esperasse. As conversas pelas quais eu tanto ansiava não aconteceram. Ou aconteceram poucas vezes. O que ela pensava sobre a vida que teve? Valeu a pena? Algum grande arrependimento? E se ela tivesse feito isso e não aquilo? O que ela esperava do futuro? E a mais importante: qual o filho preferido, de verdade? (hahaha).
Fiz todas essas perguntas, tentando encontrar respostas para minha própria existência. Mas não houve nenhuma revelação, nenhuma epifania. Minha mãe não tinha as chaves para os mistérios da vida, não era Yoda despejando sabedoria só porque estava com mais de 80 anos de idade. Era uma mulher gostando de viver. Eu gostei daquela mulher e tenho certeza que ela também gostou da companheira de viagem.
Melhor presente que uma mãe pode dar para outra.
Pausa no museu de Inhotim
Sobre a autora
Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.
Sobre o blog
Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum