"Casa sem formiga é casa envenenada", diz médica de câncer infantil
Brenda Fucuta
04/06/2019 04h58
Foto: Kelly Sikkema/Unsplash
Durante os próximos anos, 1 milhão de bebês terão seu estilo de vida vasculhado por cientistas do mundo todo. O acompanhamento acontecerá durante dezoito anos. Cem mil destes bebês são brasileiros – o primeiro deles, nasceu no final de 2016 – e seus pais moram em Campinas, interior de São Paulo, onde fica o Instituto Boldrini, hospital conveniado à Unicamp – Universidade Estadual e Campinas – e referência na América Latina no tratamento de câncer infantil. Entre outras coisas, os pesquisadores avaliarão o papel, no desenvolvimento de doenças como câncer, malformações congênitas e distúrbios hematológicos, à exposição dos pais deles a inseticidas e produtos químicos, além de infecções ocorridas na pré-concepção ou gestação. Uma das cientistas envolvidas neste megaprojeto é a pediatra Silvia Brandalise, 76 anos, que ajudou a fundar o Boldrini e o preside deste 1986. Neste entrevista, ela fala sobre o perigo dos agrotóxicos e dos venenos domésticos.
Silvia, recentemente, você fez uma palestra em um fórum de mulheres, em Campinas, o InspiraDelas, e criticou duramente o uso de agrotóxicos. Existe uma associação comprovada entre eles e o câncer infantil? Existem evidências que associam o câncer em crianças à exposição de um ambiente não sadio. Não temos como calcular a associação do conteúdo dos agrotóxicos nos alimentos, mas já sabemos que substâncias contaminantes na água que bebemos podem estar relacionadas ao câncer. No livro Ensaios sobre Poluição e Doenças no Brasil, a engenheira química Sonia Corina Hess fala da ocorrência de doenças associadas à poluição ambiental e à contaminação dos alimentos. Outros estudos recentes, de 2018, um dinamarquês e outro italiano[1] mostram uma correlação estatisticamente significativa entre o câncer infantil e o benzeno (substância encontrada em derivados de petróleo e tintas; um derivado frequentemente utilizado em produtos de limpeza) e outros produtos químicos.
O Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxico do mundo e a situação pode piorar se for aprovada a PL do veneno (PL 6299/2002) na Câmara dos Deputados e no Senado, que facilita a entrada de pesticidas no país. O que você recomenda aos pais? Como eles podem proteger seus filhos? Recomendo que não usem inseticidas de qualquer tipo, mesmo os piretróides (substância sintética utilizada em inseticidas e repelentes). Não autorizem as pulverizações da dengue ou da zika. Não usem repelentes, não usem fungicidas nas plantações e nem carrapaticidas em seus animais domésticos. Leiam com bastante atenção a bula para checar a composição detalhada dos produtos de limpeza doméstica. E excluam todos que contenham as palavras benzeno, tolueno (presente em sacarina, esmaltes, corantes, alguns medicamentos), xilol (solvente em tintas, vernizes, corantes, plástico), ácido sulfônico (presente em produtos de limpeza e detergentes) e glifosato (o agrotóxico mais utilizado no Brasil). Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, permitiu seu uso no país por não encontrar evidências científicas de que ele cause câncer). Num país como o nosso, onde metade das casas não têm rede de esgoto e sofre com coletas de lixo precárias, é óbvio que teremos mais mosquitos e baratinhas… Mas casa sem barata e sem formigas significa 04dizer, em outras palavras, uma casa "envenenada".
Que cuidados os pais devem tomar em relação aos alimentos? Quais são perigosos? Não há alimentos perigosos; sozinhos, eles não provocam câncer. Mas existem alimentos contaminados com agrotóxicos que têm comprovada ação cancerígena. Isso foi largamente exposto no livro da Sonia Corina Hess ("… foram descritas propriedades cancerígenas de substâncias industriais tais como o bisfenol A, ftalatos, alquilfenis – desreguladores endócrinos, componentes de plásticos, detergentes, e outros materiais de amplo emprego – protetores solares, glifosato e outros princípios ativos de agrotóxicos com uso ainda permitido no Brasil", relata a engenheira química da Universidade Federal de Santa Catarina no livro.) Há alguns meses, fui convidada a dar uma conferência na Embrapa. Ao expor os dados da Anvisa sobre o percentual de amostras inadequadas para consumo, pelo alto teor de contaminação com agrotóxicos, os profissionais da Embrapa me chamaram a atenção para a presença desses resíduos no arroz, alimento que ingerimos diariamente. Habitualmente, ficamos preocupados com os resíduos de inseticidas no pimentão, no morango e outros. Nunca havíamos nos detido no arroz e feijão, que consumimos diariamente.
Que tipo de política pública você acha que precisamos implementar para diminuir o risco de câncer infantil? Veja, eu não sou especialista em produtos cancerígenos. Fico no campo de batalha, quando o câncer já se instalou. Mas acho que devemos investir em educação ambiental no ensino fundamental e na implantação de políticas públicas mais rigorosas. Também devemos respeitar as deliberações sobre a proibição dos produtos sabidamente cancerígenos da lista da FDA (Food and Drug Administration, agência norte-americana que regula alimentos e medicamentos) e da EMA (European Medicines Agency, que regula e supervisiona a saúde pública e saúde animal na União Europeia). Além disso, podíamos melhorar os mecanismos de controle ambiental pelas nossas agências reguladoras. Em 2016, havia no Brasil a presença de 148 agrotóxicos que estavam proibidos na Europa. Chama a atenção que os "níveis aceitáveis" dos inseticidas no Brasil sejam altamente superiores àqueles estabelecidos internacionalmente. (Segundo Larissa Mies Bombardi, do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo em entrevista à BBC, "permitimos um nível de glifosato na água até 5 mil vezes maior do que a União Européia".) Nestes últimos dois anos, foram registrados e liberados dezenas de novos inseticidas, sem se levar em consideração a segurança do produto. Muitos deles, já sabidamente proibidos nos países desenvolvidos. (Por exemplo, o metomil e o imazetapir, ingredientes ativos de agrotóxicos, cuja liberação, neste ano, foi polêmica.)
[1] Volk, I et al. Scand J. Work Environ Health 2018. doi: 10.5271/sjweh 3811 e Ivarone, I et al. Epidemiol Prev.2018; 42 (5-6) Suppl 1: 76-85.
doi:10.1919/EP18.5-6:51.PO76.090
Sobre a autora
Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.
Sobre o blog
Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum