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Automutilação de adolescentes: estamos diante de uma epidemia?

Brenda Fucuta

28/07/2019 04h13

iStock

 

Tem gente que fala de uma epidemia entre os adolescentes. Mas, na verdade, é difícil dimensionar o tamanho da prática do cutting – a automutilação como forma de aliviar o sofrimento psíquico – pois os casos raramente são notificados. Muitas vezes, nem os pais dos adolescentes ficam sabendo que eles se cortam, arranham e mordem o próprio corpo. Desde o final de abril, com a Lei 13819, as escolas passaram a ter a obrigação de notificar a prática, o que, em tese, pode ajudar a entender a proporção do problema.

Em um estudo feito por acadêmicos[1] da Universidade Federal de São João del-Rei, quase 10% dos 517 entrevistados (adolescentes de 10 a 14 anos)  relataram episódios de autolesão. Os principais motivos: tentar diminuir o vazio e as sensações ruins. Se fosse possível projetar esses 10% para toda a população pré-adolescente brasileira, teríamos um número alarmante: cerca de 1,7 milhão de pessoas. Só para efeito de comparação, em 2018, o Brasil registrou 1. 659 casos de dengue.

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O que torna o cutting tão presente? Tem a ver com o tempo de mudanças que vivemos? Com a popularização da prática pela internet? "São vários fatores: biológicos, ambientais, sociais. É uma complexa interação", diz a psicóloga Ana Maria D'Alessandro de Camargo, pós-graduada em bioética e psicologia clínica. Ana Maria integra um grupo de especialistas que está criando uma cartilha de orientação a escolas  no atendimento de casos de autolesão e suicídio. Abaixo, um resumo da nossa conversa sobre autolesão na adolescência.

O fato de ter muitos grupos e páginas de cutting nas redes sociais pode estimular o comportamento de automutilação?
Não acho que o adolescente vai se automutilar por imitação, não acredito no efeito Werther nesses casos (Ela se refere à suposta onda de suicídios que aconteceu no século 18 depois que o escritor alemão Goethe publicou o romance "Os Sofrimentos do Jovem Werther", em que o protagonista se mata.) Mas quando existem os fatores que ajudam a ampliar  a dor existencial, quando há uma predisposição, o encontro com um grupo de iguais pode favorecer uma identificação positiva, do tipo "Ah, não sou só eu", e negativa, de fortalecimento das práticas de autolesão como forma de alívio desta dor que não consegue nomear.

Você diz que são muitos os fatores que levam ao cutting. Quais seriam os ambientais e sociais?
Falo das condições que o adolescente vive. Desde o ambiente físico, o território que ele está habitando, as influências culturais e até o contexto familiar e seu posicionamento no grupo. O adolescente que pratica a automutilação está sofrendo por alguma dessas razões ou todas juntas, ou outras que nem identificamos. Alguns, se ferem por um processo de autopunição, por achar que merecem o castigo. Mas o mais importante é entender que o adolescente tenta aplacar a dor existencial com a dor física. A dor é tanta que ele precisa acabar com ela. Na hora que ele se corta, a dor física parece suspender a outra dor, a psíquica. Exemplificando de maneira bem reduzida: sabe quando você fecha a porta do carro no dedo e, naquele momento, a única coisa que você sente é uma dor excruciante? Não há espaço para pensar mais nada, se preocupar com mais nada. É mais ou menos o que acontece com o cutting.

A psicóloga Ana Maria D'Alessandro de Camargo integra grupo que escreve uma cartilha de prevenção à automutilação e suicídio

Você tem pacientes dessa faixa etária. O que está causando tanto dor nos pré-adolescentes, na sua opinião?
Durante a adolescência, a busca da identidade é uma janela para os dilemas existenciais. Mas também não podemos desconsiderar que estamos vivendo em uma época de transformação radical nos modelos sociais. É um momento atípico, em que todo mundo manda na vida de todo mundo e o papel de pai e de mãe – no sentido do adulto responsável, independentemente do gênero – está esvaziado. As pessoas têm dificuldade de criar, de educar, de dizer não. Não estou dizendo que os pais são culpados, todos estão meio perdidos com essa nova estrutura social que estamos vivendo, saindo de um lugar que conhecíamos para descobrir um novo lugar. Mas os filhos sofrem com a falta da orientação, de contenção e, principalmente, com a não construção da resiliência. Num mundo onde tudo pode, não existe proibido, a criança fica sem o contorno de quem é ela e de quem é o outro, não se frustra porque todos os seus desejos ou a grande maioria deles é realizado. Como desenvolver alguma resiliência num ambiente construído dessa forma?

Por que a falta de resiliência pode causar dor existencial?
Não vejo como uma relação causal  a falta da resiliência e a dor existencial, mas posso inferir que a resiliência nos ajuda a lidar com as mazelas que a vida nos traz. A falta da habilidade em lidar com a adversidade ajuda num engessamento de respostas às situações de vida, o que pode gerar uma  insatisfação em relação a ela.

Como ajudar um adolescente que está se machucando?
Na maioria das vezes, o adolescente não pede ajuda, ele esconde os machucados, as lesões. Em geral, eles se cortam em locais que ficam escondidos pela roupa. Mas, em algum momento, isso se torna visível ,"escapa" e  esta é a chance de os pais perceberem que há algo errado, que seu filho está em  sofrimento e não está conseguindo lidar sozinho com isso. Nessa hora, existe a possibilidade de diálogo. O adolescente, sem se dar conta, está pedindo ajuda e nós pais e profissionais precisamos estar atentos a estes pequenos sinais.  Se os pais ou os responsáveis diretos não conseguirem estabelecer uma conexão, construir uma ponte naquele momento, é hora de pedir ajuda externa para o médico da família ou um profissional da área de saúde mental, ou até mesmo,  acionar a rede de apoio que são os amigos e familiares, para uma intervenção a favor da vida.

Existem sinais, no comportamento do adolescente, que os pais devem observar com atenção?
Existem sinais de que algo não está bem com ele e isso vale para muitos transtornos. Se ele ficar isolado demais, se se afastar do convívio familiar,  ficar trancado no quarto o tempo todo e se este não for um  comportamento rotineiro, é interessante prestar atenção. Se pergunte: o que meu filho está fazendo de diferente? Devemos estar atentos às mudanças bruscas de comportamento, falas sobre não ter esperança no futuro ou desejar morrer, frases como " o mundo ficaria melhor sem mim", "queria dormir e não acordar mais" também são indicativos de que algo não está bem, são sinais de alerta importantes.

Quando o amigo do seu filho ou a amiga de sua filha está se machucando intencionalmente, como avisar os pais?
Dizendo para a mãe ou para o pai da coleguinha: "Vi que ela se machucou, fiquei um pouco preocupada. Será que posso ajudar?" Ofereça a informação de maneira delicada e não tente resolver pelos pais. Se você for acolhida pela família, pode ajudar muito, tanto na busca de profissionais de saúde, quanto no apoio, na demonstração de solidariedade.

E a escola, como ela pode lidar com essa situação?
O melhor é se antecipar, fazendo reuniões com os pais, com os alunos e profissionais. Muitos estudos e pesquisas comprovam que o momento de prevenção, em que o tema é trazido à tona, ajuda a desestigmatizar o assunto. Tanto pais quanto alunos precisam entender o que é o cutting e por que acontece. Quando aparecem situações que já se concretizaram, a escola precisa estar preparada para lidar com o problema, precisa se preocupar em ser acolhedora para a criança e para o pai. Algumas escolas fazem rodas restaurativas, envolvendo os pais. São rodas de conversa com a participação de facilitadores preparados para mediar conflitos.  Como automutilação e tentativa de suicídio são muito estigmatizados, a escola tem que ajudar na reinserção do aluno também.

 

[1] Paulo Henrique Nogueira da Fonseca; Aline Conceição Silva; Leandro Martins Costa de Araújo; Nadja Cristiane Lappann Botti

 

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Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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