Você também esquece o nome do seu amigo?
Brenda Fucuta
24/08/2018 04h00
Foto Matthew Cramblett /Unsplash
"Quando vamos tomar aquela sopa de lentilha"?
Por acaso, encontro uma das minhas amigas bissextas, aquele tipo da qual a gente gosta muito mas, por alguma razão, sempre perde o contato.
Ela retribui meu abraço com carinho. Chama o marido, amigo também, para me cumprimentar. Beijamos as bochechas, olhamos rapidamente nos olhos um do outro e eu penso. Arnaldo? Alberto? Alfredo? Começa com A, tenho certeza.
Estamos numa livraria de bairro e partimos para o papo típico da situação fico-feliz-em-te-encontrar-mas-tenho-outros-compromissos-me-desculpe. Em geral, essas conversas terminam com a clássica promessa de encontro para um café num dia desses. Mas, neste caso, a sopa de lentilha, receita de família da amiga, é o equivalente ao café.
"Então, quando vamos tomar aquela sopa de lentilha"?
"A hora que você quiser. Semana que vem?"
"Claro, perfeito."
"Mesmo? Eu sou mais desocupada que você, posso marcar qualquer dia." Hahahá. (Estamos as duas bem desocupadas, meio-aposentadas na verdade.)
"Ah, tá bom. Você é que é a difícil desta relação. Na hora que marcar, eu vou", respondo.
Combinamos de combinar o encontro pelo WhatsApp ou Messenger.
Dez ou doze dias depois, estou repassando meus compromissos e me lembro da lentilha. A gente não tinha combinado alguma coisa? Será que era um encontro do qual me esqueci? Ligo pra minha amiga em um rompante – gesto pouco polido, sem comunicar antes que vou ligar. Mas, surpresa, ela não só atende como me diz que prefere assim. "Estou cansada desta etiqueta moderna. Se a pessoa quer conversar, liga logo, pô!"
Só me resta concordar.
"E aí? A gente não ia se encontrar? A sopa…", digo, meio com medo que ela me responda que ficou me esperando e eu não apareci.
"É mesmo, né?", ela diz. "Que dia foi mesmo que a gente combinou?"
Ufa!
"Neste fim de semana? Ou foi no outro?", arrisco.
Hahahá, estamos esquecidas demais. Falamos com tranquilidade sobre nossa falta de memória, agora que esquecer das coisas não é mais tabu. (Todo mundo está esquecido, até os bebês, eu acho.)
Surge uma lista compartilhada de vítimas diárias da nossa senilidade ou desatenção.
"Nunca sei onde guardei as chaves"
"Óculos?"
"Celular é o pior"
"E o nomes dos conhecidos?
"Nossa, você também? Um dia desses, me esqueci do nome da minha cunhada."
"Eu esqueço tudo, até do nome do meu marido", ela brinca.
(Hahahá. Então, não sou só eu.)
"Mas nunca, jamais, esqueci o nome da Lola", completa.
Caraca. Quem é Lola? A filha? Não, ela não tem filha. A enteada, talvez?
"A Lola… Não dá pra esquecer da Lola, né?", digo, sem me comprometer, esperando que ela me dê alguma pista.
Mas minha amiga devolve a bola.
"Como vai seu filhote?", pergunta.
Me dou conta de que ela não só não se lembra do nome do meu filho, como se esqueceu que tenho dois.
Estamos quites, decido. Por isso, ignoro a Lola e volto pra lentilha.
"Escuta, para de me enrolar com esta história da lentilha. Você vive me convidando e nada. Tem certeza que existe esta sua sopa?"
Silêncio.
Não sei se minha amiga foi conferir a receita, se foi atender a campainha ou se não ouviu. Na nossa idade nunca se sabe.
Mas ela volta.
"Tem certeza de que a gente já não se encontrou pra sopa? Dois ou três anos atrás? Acho que você trouxe aquela sua amiga simpática. Qual o nome dela mesmo? Não sei, de repente me deu um déjà vu."
"Tá louca? Nunca tomei sua sopa", digo. Mas antes mesmo de terminar a frase, o gosto da lentilha meio que volta, num flashback de sabores. Lentilha, vinho. Nossa, como fui me esquecer? O marido sem nome tocou o piano da sala. Minha amiga cantou aquela música… Qual era mesmo?
E a Lola! Agora me lembro. A Lola, aquela shih tzu idosa de olhos esbugalhados que ficou latindo na minha orelha o jantar inteiro, até que fugiu pra cozinha depois que eu dei um pequeno beliscão – um belisquinho. Só pra ela me deixar em paz.
A Lola ainda está viva? Sério?
Meu Deus, espero que ela não se lembre mais de mim.
Sobre a autora
Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.
Sobre o blog
Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum