Blog Nós http://nos.blogosfera.uol.com.br Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum Sat, 12 Sep 2020 07:00:35 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Prevenção ao suicídio: ouvir e acolher é melhor do que dar conselhos http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/09/12/prevencao-ao-suicidio-ouvir-e-acolher-e-melhor-do-que-dar-conselhos/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/09/12/prevencao-ao-suicidio-ouvir-e-acolher-e-melhor-do-que-dar-conselhos/#respond Sat, 12 Sep 2020 07:00:35 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1069

Tamy Natal (Arquivo Pessoal)

A ideia desse texto surgiu durante o diálogo sobre outro assunto, quando Tamy Natal, 35 anos, falava sobre seu amor por cachorros e a gratidão que sentia por eles depois de se recuperar de uma longa e profunda depressão. Na época, nos prometemos uma segunda entrevista, na qual Tamy pudesse dividir a história de alguém que convive com ideias e tentativas de suicídio há mais de dez anos. Decidimos publicar trechos da nossa conversa em setembro, mês da campanha de prevenção ao suicídio.

Eu lembro que você se definiu como ex-suicida, o que me deixou um pouco chocada. Nunca tinha ouvido esse termo antes. Por que essa definição?

As pessoas se chocam mesmo, não é? Suicídio não é um assunto fácil, ainda é tabu, constrange as pessoas, elas nunca sabem o que dizer. Esse é um dos motivos pelos quais uso esse termo. Não escondo que tentei o suicídio porque acho importante que se perca o medo de falar sobre ele. Quando alguém está sofrendo tanto que só enxerga a morte como uma saída, ele precisa muito que as pessoas ao redor percebam e ofereçam ajuda. Eu acredito que a ajuda certa vem do conhecimento. Por exemplo, uma pessoa em depressão profunda quer ser amparada, acolhida, quer que alguém pegue na sua mão e diga: “Pode falar, estou te ouvindo, estou aqui para te ajudar”. Mas em geral o que ela recebe é um monte de conselho inútil. “Segue em frente, você é forte, lute pelos seus objetivos.” Ou: “Por que não procura um tratamento?” Como assim? A pessoa só pensa em coisas terríveis, não tem força nem para abrir o guia de médicos do convênio para procurar um psiquiatra. Deveria haver mais conhecimento entre as pessoas para ajudar quem está em um estado de depreciação tão grande que não vê outra saída senão se matar.

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Você acha então que se assumir como ex-suicida ajuda a diminuir o tabu?

Acho que sim, acho que temos de falar do assunto e apelar para a responsabilidade afetiva das pessoas com quem está deprimido. Mas admito que não é uma decisão fácil, eu ainda me preocupo com o impacto disso em ambientes como o de trabalho. Apesar da minha decisão de não esconder, tenho um pouco de receio de como minha história vai ser interpretada porque existe muito preconceito em relação à depressão. Hoje em dia, percebo que tem uma tendência das pessoas em normalizar a depressão, mas é muito comum que eu me pegue pensando se esse dado vai prejudicar o modo como sou vista dentro de uma empresa. Não quero ser avaliada como uma pessoa frágil e problemática, alguém que possa “surtar” durante uma negociação.

Mas você está dando uma entrevista que pode ser lida por seus colegas e chefes…

Pois é, eu sei. Mas, como te disse, tomei a decisão de não esconder.

De qualquer maneira, você não se define como suicida, mas como ex.

Sim, porque o suicídio pode até passar pela minha cabeça, aquela vontade de sumir para acabar com os problemas e o sofrimento, mas a ideia dele não me domina mais, não prevalece. Não quero entender a morte como a solução para acabar com o sofrimento e a dor.

Hoje, falamos bastante em prevenção do suicídio. Alguma coisa poderia ter sido diferente na época em que você tentou se matar pela primeira vez?

Não sei. Eu tinha terminado meu noivado depois de uma briga muito violenta. Sofri muito. Chorava o tempo todo, perdi 15 quilos em dois meses. Minha família talvez não tenha percebido a gravidade da situação, eu não tinha intimidade para contar o que sentia, achava que não havia solução. Entrei em depressão, tentei o suicídio e meus pais nem sequer sabiam por que eu tinha terminado meu relacionamento. Enfim, eu escondi ao máximo o que acontecia comigo, aquela sensação de impotência, de depreciação. Não acreditava que havia saída para aquela dor.

Você me contou que, depois disso, sua família passou a levar a sério sua depressão e que isso a ajudou muito. Além disso, você comprou um casal de cachorros por sugestão de um psiquiatra.

Sim, o apoio ativo dos meus pais foi muito importante a partir daquele momento. Foi muito difícil para eles, muito dolorido… É dolorido até hoje, entendo que nenhum pai ou mãe está preparado para ver seu filho tentar se matar, mas para eles foi algo absurdo. Nunca tinham imaginado que pudesse acontecer comigo. Também tive o apoio do meu marido, que sempre entendeu meus momentos difíceis, deu o espaço que eu precisava durante todo o nosso casamento. Nos casamos um ano depois de minha primeira tentativa. Além disso, como eu já contei, meus cachorros foram minha salvação. Eles me fizeram sentir necessária, que eu precisava estar viva para cuidar deles… Outra coisa que me ajudou muito e também foi sugestão do psiquiatra foi buscar um hobby. Eu comecei a fazer aulas de dança de salão e conheci pessoas incríveis. Me senti acolhida de verdade, me identifiquei com aquele núcleo de pessoas que tinham histórias parecidas com a minha. Curioso isso, mas parece que ex-deprimidos, ex-ansiosos e ex-rejeitados acabam buscando as aulas de dança de salão.

Como você enxerga esse caminho até agora?

Um caminho difícil que eu reinicio muitas vezes. Acredite, ainda tenho recaídas, como agora, na pandemia. Mas eu valorizo minhas conquistas, gosto de ver onde cheguei. Estou sempre me reconstruindo, não quero voltar para trás.

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Alguns homens ainda acham que a pensão vai para a ex e não para os filhos http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/09/05/alguns-homens-ainda-acham-que-a-pensao-vai-para-a-ex-e-nao-para-os-filhos/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/09/05/alguns-homens-ainda-acham-que-a-pensao-vai-para-a-ex-e-nao-para-os-filhos/#respond Sat, 05 Sep 2020 07:00:40 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1061 Ouço a conversa de dois jovens pais que foram obrigados a pagar pensão alimentícia aos filhos. Estão revoltados. Um deles diz que não ganha, no mês, a quantia da pensão determinada em juízo. O outro reclama que seu dinheiro será desperdiçado pela ex. Enquanto conversam, lembram, um ao outro, que adoram seus filhos e odeiam as mães deles.

Por que é tão difícil, para muitos pais, entenderem que dar parte de seus ganhos para o sustento dos filhos não é absurdo? Que medo é este de que o dinheiro vá ser gasto pela mãe com “coisas para ela” e não para a criança?

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A ameaça de prisão em caso de não pagamento da pensão alimentícia é assustadora, claro. E existe muita gente com renda variável, gente que de fato pode não conseguir fazer, no mês, o que foi determinado que eles paguem aos filhos. Entendo tudo isso. Mas crianças precisam comer, se vestir, se divertir, se educar todo dia, certo?

Me pergunto de onde vem o medo de que o dinheiro vá ser gasto pela ex-mulher. Fruto de uma visão antiga –e machista– sobre a responsabilidade na criação dos filhos? Uma visão que ainda associa crianças a um projeto de casal, e não de dois adultos? Explico. Muitas vezes, me parece que, para muitos pais, acabado o casamento, acaba também a responsabilidade sobre os filhos.

Até mesmo a responsabilidade emocional pode desaparecer. Nessa semana, a coluna da jornalista Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo, publicou a seguinte notícia: a Justiça autorizou, pela primeira vez, que o nome de uma pessoa fosse modificado porque tinha sido dado por um pai que a abandonou. Ao rejeitar o nome, a filha adulta tratava de esquecer a rejeição do pai.

Quantas histórias de abandono não conhecemos? Vamos lembrar que mais de 30% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, o que dá uma pista sobre a quantidade de mães solo no país. Por acaso, é muito comum que os juízes estabeleçam o valor das pensões alimentícias  em 30% da renda.

Nunca conheci uma mãe, divorciada ou solo, que achasse injusto gastar 30% dos seus ganhos mensais com a família. Em geral, gasta-se tudo. Ou seja, me parece que pais que ficam com dois terços de sua renda para gastos próprios estão no lucro.

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Susana Vieira em foto sem make faz um tremendo favor às mulheres http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/08/29/foto-sem-make-e-o-novo-cabelo-branco-das-mulheres/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/08/29/foto-sem-make-e-o-novo-cabelo-branco-das-mulheres/#respond Sat, 29 Aug 2020 07:00:13 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1052

Susana Vieira sem make/Reprodução Instagram

A atriz Susana Vieira não é conhecida por sua militância feminista. Mas ao publicar fotos sem maquiagem, em seu perfil no Instagram, ela faz um tremendo favor às mulheres. A última foto de cara limpa da atriz –sorrindo, com um pijama (?) de coelhinho– foi publicada um mês antes de ela completar 78 anos de idade –seu aniversário aconteceu no dia 23 de agosto.

E, claro, a atriz está muito diferente. Lembra a Meryl Streep, no filme “O Diabo Veste Prada, flagrada em sua casa, também de cara limpa. Meryl Streep interpreta a lendária diretora da revista Vogue, Anna Wintour, e a cena sem maquiagem me pareceu muito assustadora à época. Era raro ver esse tipo de coisa em 2007.

Uma artista popular como Susana –com 130 milhões de fãs, conforme ela própria lembra em entrevistas– posar sem make é mais importante do que parece. Faz bastante tempo que ela segura “heroicamente” o modelo mulherão. Ao lado de maridos e namorados jovens, de roupas coladas ou de biquíni, cabelos fartos e loiros, Susana desafia com insistência o código de comportamento previsto para mulheres mais velhas.

A atitude dela faz bem para liberar mulheres do padrão de beleza e comportamento que nos restringe ainda hoje. Mesmo que Susana espelhe, de forma invertida, a atitude de homens mais velhos com parceiras mais jovens, tipo troféu. Mesmo que ela insista em parecer tão sexy como Beyoncé. Susana deu legitimidade ao desejo de suas fãs por namorados jovens. Isso não é pouco, faz parte do caminho de desconstrução da imagem que se espera de nós.

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Por isso, acho tão bacana vê-la sem maquiagem. Por mais contraditório que pareça, essa atitude pode ser interpretada como uma progressão natural da trajetória insubordinada da atriz. É mais um gesto de contestação ­–talvez inocente– à expectativa comum, um dedo do meio para quem só enxerga beleza quando as rugas estão bem escondidas.

Posar para a câmera sem maquiagem é o novo cabelo branco assumido, um próximo passo de um lento, mas felizmente progressivo, desnudamento das mulheres do figurino que as obrigou a parecer o que se espera delas.

Mas não se espera que mulheres com mais de 70 deixem o cabelo ficar branco? Que usem maquiagem delicada, apropriada para a idade? Mulheres velhas devem usar cabelos curtos, vestidos soltinhos e nunca acima do joelho. Short, nem pensar. Biquíni? Falta de educação. De compostura. Não é exatamente isso que diz o senso comum? Com-postura?

Ondas de mudança de comportamento não são unânimes ou coerentes. Nem todos embarcam nelas ao mesmo tempo. É de se esperar que algumas mulheres se permitam parecer sexy e jovens aos 70 anos enquanto outras queiram parecer bonitas com suas rugas. Neste momento, as duas coisas podem ser libertadoras porque contestam padrões e expectativas.

Aliás, o que mais liberta é poder. Poder usar o que quiser, do jeito que quiser. Não é preciso usar cabelos brancos, mesmo que você os tenha, se os prefere pretos ou castanhos. Não é preciso posar sem make se você não gosta de se ver assim. Ou se você adora se maquiar. Não é preciso nada. Principalmente, aos 70 anos, quase 80. A idade deveria nos permitir liberdade absoluta das convenções.

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Carta aberta ao arcebispo de Recife e aos militantes contra o aborto http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/08/22/carta-aberta-ao-arcebispo-de-recife-e-aos-militantes-contra-o-aborto/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/08/22/carta-aberta-ao-arcebispo-de-recife-e-aos-militantes-contra-o-aborto/#respond Sat, 22 Aug 2020 07:00:23 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1044

(Hannah Oliver/Unsplash)

Caro dom Antonio Fernando Saburido, arcebispo de Recife e Olinda,

As pessoas estão tristes com o Brasil.

Como pode uma criança de dez anos ser criticada por não querer ser mãe? Como se pode xingar de assassinos os médicos que interromperam a gravidez? É de desanimar mesmo. Por outro lado, por que a surpresa agora se a cada seis horas [1] uma menina de 10 a 14 anos é internada em um hospital para interromper a gestação? E por que os movimentos contra a legalização do aborto estão gritando tanto se a lei que o permite, em casos como o da menina, data de 1940?

Por que reagimos como se, até então,  tudo isso fosse novidade? Como se, até então, no país, três menores de idade não estivessem sendo abusados sexualmente, a cada hora –principalmente por conhecidos?[2] Parentes, amigos, vizinhos. No momento em que o senhor estiver lendo este texto, pelo menos uma criança da sua paróquia está sendo assediada por um adulto.

Hoje mesmo, assim como ontem e amanhã, um juiz despacha autorização para que uma criança ou uma adolescente possa interromper uma gravidez fruto de estupro. No mesmo dia, algum médico decide se vai ou não ajudar esta criança. Sim, essas coisas não acontecem apenas em Marte.

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Por que permitimos que abusos continuem acontecendo? Permitimos quando não queremos falar deles, quando proibimos aulas de educação sexual nas escolas, quando deixamos de ensinar às crianças que o corpo é delas e não pode ser tocado se não quiserem. Não as orientamos a denunciar situações de intimidade forçada e nem as preparamos para identificar sinais de gravidez.

Se tem algo de que precisamos agora é abrir os olhos. A história de horror da menina de dez anos não deve nos entristecer, deve nos indignar. Precisamos brigar para que a educação sobre saúde sexual volte às escolas. Hoje, por força de opiniões de fundo conservador e religioso, ela não integra a Base Nacional Comum Curricular.

Da mesma maneira que não estamos lutando para que as crianças aprendam a identificar abusos e abusadores, também estamos nos fingindo de loucos ao fugir do debate sobre a legalização do aborto. Segundo estudo realizado pelo IBGE, em 2015, mais de 1 milhão de mulheres provocaram abortos no Brasil.

Como o Código Penal tipifica como crime essa situação, imagina-se que elas o tenham feito de forma clandestina. O perfil majoritário de quem aborta, segundo o artigo 20 anos de Pesquisa Sobre Aborto do Brasil, do Ministério da Saúde, de 2009, é de mulheres de 20 e 29 anos, casadas, mães e católicas. Ao interromper uma gravidez que não desejam, essas mulheres estão arriscando sua vida e sua liberdade.

Na semana passada, o senhor publicou um vídeo lamentando o aborto da criança de dez anos. “Se grave foi a violência do tio que vinha abusando de uma criança indefesa, culminando com violento estupro, gravíssimo foi o aborto realizado em Recife quando todo o esforço deveria ser voltado para a defesa das duas crianças, mãe e filha.”

Bem, dom Aburido, não seria possível defender as duas crianças sem colocar a vida de uma em risco. Além disso, a menina cuja gravidez foi interrompida pelos médicos do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, de Recife, não esperava um filho. Ela carregava a prova de um abuso. Para essa menina, a gravidez não era um presente divino, era uma condenação.

Sim, arcebispo, sou daquelas pessoas que defendem a legalização do aborto –ou sua descriminalização. Que acreditam no direito de não dar continuidade a uma gravidez indesejada. Mais ainda, sou a favor de que essa mulher conte com médicos, enfermeiros, hospital e sala de cirurgia. Porque um aborto não é algo que ela deveria experimentar sozinha, escondida. Já é doloroso demais ter que fazê-lo.

Mas, veja bem, não sou a favor de matar crianças, como poderia? Quem se posiciona a favor da legalização do aborto costuma ser confundido com simpatizante do aborto, o que considero um equívoco que precisa ser esclarecido todo dia.

Determinar quando começa a vida dentro da barriga da mulher é algo angustiante, inquietante e, talvez, incerto, embora se acredite que um ser autoconsciente só exista a partir do desenvolvimento do sistema nervoso central, por volta das 12 semanas de gestação.

Por outro lado, não é incerto –ou não deveria– o entendimento de que o desejo e o exercício da maternidade sejam voluntários. Obrigar uma mulher a dar continuidade a uma gestação não desejada é tão grave quanto nos transformar em corpos de qualquer um, galinhas chocadeiras. A vontade de carregar, parir, criar, cuidar e amar um ser humano pelo resto da vida só é sagrada se for uma escolha individual.

 

[1] Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016, realizada pelo Anis Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB)

[2] Ministério da Saúde, 2018

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Carta à família e aos amigos das mulheres trans executadas em 2020 http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/08/15/carta-a-familia-e-aos-amigos-das-mulheres-trans-executadas-em-2020/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/08/15/carta-a-familia-e-aos-amigos-das-mulheres-trans-executadas-em-2020/#respond Sat, 15 Aug 2020 07:00:11 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1037

(Artem Maltsev/Unsplash)

Peço licença para escrever esta carta aberta a vocês. Não os conheço, não sou sua amiga nas redes sociais. Imagino que vocês também nunca tenham se encontrado, já que moram em cidades diferentes: São Paulo, Florianópolis, Milão, Embu-Guaçu, Salvador, Recife, Dourados… Mas estou me dirigindo a todos porque algo terrível os une, algo que vem me assombrando também.

Nos últimos meses, vocês perderam filhas ou amigas, netas ou irmãs. Katarina, Isabelle, Rebeka, Manuela, Lorena e Kethley –e dezenas de outras mulheres– foram espancadas e machucadas até a morte. Isabelle, de 27 anos, morreu, esfaqueada, 15 dias depois de ser surrada por um grupo de homens. Na rua. À luz do dia, como dizem.

Kethley e Lorena também apanharam, foram cortadas e sangraram publicamente, sem que ninguém interferisse. O corpo de Katarina, de apenas 22 anos, exibia perfurações. Assim como o de Rebeka, abandonado ao lado do rio. E o de Natasha, embrulhado em um lençol. Manuela, de 48 anos, que morava em Milão, foi esfaqueada 80 vezes. Puro horror.

Até agora, meados de agosto, foram registrados 89 crimes desse tipo nas cidades brasileiras, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Dez por mês. Dez vezes a cada 30 dias em que nos mostramos bárbaros, possuídos pelo ódio ao que nós é estranho. Um fascínio e uma repulsa por essas mulheres que, ao nascerem com corpos masculinos, subverteram a ordem do mundo que alguns consideram organizado, preto no branco, sem meio tons. E sabemos que a vida é tudo, menos reta, previsível e certa.

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Suas filhas tiveram vidas curtas e mortes dolorosas. Foram julgadas e executadas por crimes que não cometeram. Buscar a verdadeira identidade, usar o corpo da maneira que bem entenderem –o corpo que é só seu, de mais ninguém– são atos de liberdade, não são crimes.

Quanto a nós, peço perdão. Nada justifica que estejamos anestesiados diante desse tipo de crime –que, aliás, já está previsto em lei. Nenhum tipo de crença religiosa ou de costumes deveria legitimar espetáculos pavorosos de tortura pública. Nada nos dá o direito de criar filhos capazes de cometer tais barbaridades. O seu sofrimento merece nossa compaixão. A execução dessas mulheres merece a nossa revolta. Ninguém deveria morrer tão cedo.

Espero e rezo para que isso não se repita. Temos que lutar, preparar o mundo para que que nossas filhas e amigas possam ter vidas longas. E, quando morrerem, que seja de forma digna.

 

São Paulo, fevereiro de 2020 Katarina Ariel, 22 anos, foi executada no meio da rua e seu corpo foi encontrado com marcas de facas.

Florianópolis, Santa Catarina, fevereiro de 2020 Isabelle Colst, de 27 anos, morreu após ser esfaqueada e espancada com um pedaço de pau. Quinze dias antes, foi surrada por um grupo de homens e havia dito a uma amiga que estava com medo de ser atacada novamente.

Dourados, Mato Grosso do Sul, março de 2020 Uma mulher trans de 34 anos foi esfaqueada e estrangulada.

Embu-Guaçu, São Paulo, agosto de 2020 O corpo de Rebeka Araujo, 31 anos, foi encontrado depois de ser abandonado ao lado de um rio da cidade.

Francisco Morato, São Paulo, abril de 2020 Natasha Ferreira Lobato, de 30 anos, foi encontrada em casa, enrolada em um lençol. Seu corpo tinha fraturas e perfurações.

Salvador, Bahia, 13 de junho de 2020 Kethley Santos morreu perto de uma farmácia local, depois de ser esfaqueada e pedir ajuda.  

Recife, Pernambuco, junho de 2020 Uma mulher trans morreu dentro de um ônibus depois de levar uma série de facadas.

Milão, Itália, julho de 2020 Bombeiros localizaram o corpo de Manuela de Cássia, de 48 anos, no apartamento dela. Manuela morreu com mais de 80 facadas. Ela morava na Itália havia muitos anos.

 

 

 

 

 

 

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Projeto do YouTube convida a pensar que recado você quer deixar pro futuro http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/25/projeto-do-youtube-convida-a-pensar-que-recado-voce-quer-deixar-pro-futuro/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/25/projeto-do-youtube-convida-a-pensar-que-recado-voce-quer-deixar-pro-futuro/#respond Sat, 25 Jul 2020 07:40:19 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1031

(Daniele Franchi/Unsplash)

Não sei se você viu, mas o YouTube nos convidou a pegar o celular neste sábado (25) e gravar trechos do cotidiano. Como o convite não é exclusivo,  imagine a quantidade de cenas do dia a dia que serão capturadas e enviadas ao diretor de cinema Ridley Scott, contratado para produzir o documentário sobre nossas vidinhas. Um filme “cápsula do tempo”, definição do próprio YouTube. 

Não é a primeira cápsula do tempo, não deverá ser a última. Existem várias por aí, com música, roupas, documentos –e até um Chevrolet– aguardando milênios para serem abertas. As cápsulas criadas pela empresa Westinghouse, em 1939 e em 1965, estão três metros abaixo do solo de Nova York e têm instruções para serem abertas apenas em 6939.  Várias cápsulas estão no espaço, na difícil missão de apresentar a humanidade para extraterrestres. Duas viajam a bordo de naves Voyager, outras descansam no interior das sondas Pioneer 10 e Pioneer 11. 

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O que a cápsula do YouTube deveria conter? O que diríamos sobre nós mesmos a outro ser humano do futuro? Vamos começar pelos “big numbers”. Somos quase 7,8 bilhões de pessoas [1] e continuamos crescendo. Inventamos uma tecnologia que controla a quantidade de filhos, mas, ainda assim, apenas no primeiro dia de 2020, nasceram 392 mil bebês humanos. [2]

Produzimos comida suficiente para alimentar todo mundo e estamos tendo mais problemas de saúde relacionados ao excesso de comida do que à falta dela. Mesmo assim, existe gente passando fome. Estamos nos perguntando, agora, se os recursos da Terra serão suficientes para a nossa sobrevivência, já que nossa atividade afetou 75% da superfície dela. Verdade que conseguimos chegar à Lua e planejamos aterrissar logo em Marte, mas ainda não encontramos outro lugar para morar e prolongar nossa existência.  

Falamos mais de 7.000 línguas e quase todos conseguimos ler os letreiros de ônibus e escrever o próprio nome.  Mas 10% dos nossos ainda são analfabetos. Por outro lado, estamos nos comunicando como nunca, falando mais do que escrevendo, porque inventamos um aparelho que facilita a comunicação e permite enviar e receber mensagens gravadas.

É verdade que estamos dependentes dele, especialmente as crianças. Um dado que fala muito sobre nossas condições atuais: ganhamos muitas décadas de vida. Hoje, os brasileiros chegam aos 80 anos. No começo do século passado, mal beiravam os 40. Por este ponto de vista, é como se passássemos a viver duas vidas em uma.

Somos muito parecidos, uma espécie bem homogênea. Alguns poucos traços nos diferenciam, mas insistimos em valorizar mais as diferenças do que as semelhanças, o que naturalmente gera bastante tensão. Não nos incomodamos muito com desigualdades econômicas e sociais, embora o eixo ético e religioso predominante defenda a justiça e a compaixão. No fim da Segunda Guerra Mundial, no meio do século 20, nos comprometemos a garantir direitos a determinados grupos humanos que havíamos acostumado a desprezar, a excluir, a privar do acesso ao que chamamos cidadania.  Estamos brigando até hoje para que este compromisso seja honrado.

Nos consideramos muito violentos. De fato, nos matamos e nos agredimos, mas um psicólogo canadense, Steven Pinker, diz que nossa era é mais pacífica do que pensamos [3]. Conflitos e guerras contemporâneos, por exemplo, fizeram menos vítimas do que outros eventos do passado. Proporcionalmente, morreu, na Segunda Guerra, metade do número de pessoas que perdeu a vida na queda de Roma, há 16 séculos. As conquistas mongóis, entre os séculos 13 e 14, por sua vez, teriam matado cinco vezes mais vezes mais do que a última guerra mundial.

Somos reclamões por natureza e temos angústias. Uma doença chamada depressão acomete 350 milhões de pessoas no planeta. Mas somos meio bobos também, gostamos de piadas e comédia. Gostamos de estar juntos, o que certamente nos ajudou a chegar onde chegamos enquanto espécie. Agora, estamos em um momento incomum, quando uma doença altamente contagiosa nos isolou dentro de casa, matou mais de meio milhão de pessoas em poucos meses e aumentou muito o número de pessoas em estado de extrema pobreza.  

Mas ainda acreditamos que vamos sair dessa. 

Enviar um pedaço do nosso presente para o futuro, exatamente neste momento, é mais do que uma experiência documental. Acho que é um exercício de fé. Ainda não sabemos exatamente quem somos e em que lugar da história estamos. E, mesmo assim, não nos imaginamos sem futuro. Somos seres bem esquisitos. 

Boa sorte para Ridley Scott.

 

[1] Our World in Data.

[2] Unicef/estimativa

[3] No livro “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”. Companhia das Letras. 2013.

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O que aprendi com a minha pia de louça suja http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/18/o-que-aprendi-com-a-minha-pia-de-louca-suja/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/18/o-que-aprendi-com-a-minha-pia-de-louca-suja/#respond Sat, 18 Jul 2020 07:00:05 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1023

Foto: Harry Grout/Unsplash

Entro na casa dele. Arrumada, limpa, feita para receber. Cada canto tem uma graça. Um móvel resgatado da família. Um vaso com folhagens secas, resgatadas do desprezo, em um arranjo surpreendente e encantador. Livros empilhados –de maneira irregular, como um sorriso levemente torto, mas bonito ainda assim. Penso que esta casa é um presente para os olhos dos visitantes que, como eu, apreciam minúcias.

Agora, a cozinha, onde vejo a pia seca. Óbvio que tudo foi lavado e guardado, como eu já esperava. Mas o detalhe daquela grande superfície de inox sem um pingo de água me chama a atenção. Quem consegue isso, meu Deus? Uma pia imaculada, como a Virgem Maria? Começo a salivar, estou com inveja.

Minha cozinha nunca ficou assim. Juro que já tentei, nestes últimos cinco, seis anos, quando passei a lavar a própria louça e a da família. Mas, ao contrário da pia que eu estou vendo, a minha sempre tem uma colherzinha suja de café, um copo com bordas manchadas de suco, um prato com lascas de pão. Por trás da torneira, por mais que eu seque, o granito se afoga nos respingos.

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E vamos à história da briga com minha pia. Ela me escraviza. Posso passar horas diante dela, até ficar com dor nas costas, e não consigo deixar de servi-la. Máquina de lavar louça ajuda, mas não resolve. A pia foi, é e continuará sendo motivo de brigas com filhos e gatilho para combinados novos.

“A partir de segunda-feira, sujou, lavou”, dizem eles. “E as panelas? O escorredor de macarrão? A jarra de suco?”,  pergunto. “Ah, então a gente deixa juntar até acabar a louça do armário”, tentam. “E quem aguenta viver assim?”,  pergunto de novo. Meus filhos acham que sou neurótica com esse negócio de arrumação. Eu acho que eles folgam porque têm uma mãe neurótica.

Quando você olha para o abismo, ele olha para você de volta. Eu e a pia. Olho para ela, o abismo me chama. Como já passei muito tempo diante da cuba, da torneira e do detergente, refleti bastante, tenho certa intimidade com o tema. (Preciso reconhecer que isso eu faço e acho bom enquanto lavo louça: penso.)

“O que eu realmente quero, qual o meu sonho em relação à pia?”, me pergunto, brincando de terapeuta imaginária comigo mesma. “Quero uma pia limpa”, me respondo. “Sempre limpa. E, se não for desejar demais, seca como a do meu amigo.” Mesmo que isso pareça anúncio de absorvente, não reviso a minha vontade. Desejo controlar a pia. Quero que ela congele na situação ideal. Linda. Irretocável. Impossível. Tipo “ninguém entra e ninguém sai”. Tipo “’parem as máquinas”. Tipo “quem manda aqui sou eu”.

Em relação à pia, sou uma fotógrafa, nunca uma cineasta. Desejo arrumar a cena, ajeitar a luz, cuidar da simetria. Consertar a realidade, talvez? Eternizá-la no frame que me agrada. Para ser bem sincera, esta história de congelar cenários também se repete fora da cozinha. Mania de controle vicia, mas é tão frustrante quanto a maldição de Sísifo, o príncipe que passa a eternidade subindo uma pedra que sempre retorna ao lugar de onde foi tirada. Ou, para quem não gosta de mitologia grega, querer controlar é tão frustrante quanto secar gelo. O que é vivo –a pia ensina– é incontrolável. Coisa mais injusta…

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Se o home office sobreviver, torço pela morte das reuniões http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/11/se-o-home-office-sobreviver-torco-pela-morte-das-reunioes/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/11/se-o-home-office-sobreviver-torco-pela-morte-das-reunioes/#respond Sat, 11 Jul 2020 07:00:02 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1012

Foto: Christina @ wocintechchat.com/Unsplash

O home office foi aprovado por 70% dos entrevistados em uma pesquisa da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, conforme notícia publicada nesta semana. A maior parte desses entrevistados recebe altos salários.

A ideia do home office frequentava minhas aspirações e a de muitos colegas da editora Abril, onde trabalhei por muitos anos e na qual experimentei o mundo corporativo. A Abril foi uma empresa vibrantemente criativa. Uma delícia. Mas também exigente. Meus últimos anos foram exaustivos e, talvez por isso, a fantasia de trabalhar perto dos filhos, maridos, mulheres, gatos e cachorros fizesse tanto sucesso. Um dia na semana de home office significava, acima de tudo, um dia na semana sem reunião.

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Quando leio que a prática é irreversível, que o mundo do trabalho sofrerá mudanças profundas a partir dessa experiência forçada pela pandemia, fico imaginando o que acontecerá com as reuniões. Será que, finalmente, vamos mexer com a insidiosa cultura das reuniões, a solução mais bem-intencionada e menos produtiva do atual modelo corporativo?

Claro, existem reuniões e reuniões. Algumas, poucas, são para produzir um trabalho coletivo. A maioria serve para que várias pessoas ouçam o que o chefe tem a dizer. Ou para responder o que o chefe tem a perguntar. E quanto mais gente tem na reunião, mais chata ela fica. Porque, com muita audiência, sempre acontece uma apresentação em Power Point. As reuniões começam como sala de aula e terminam como uma lista de “to dos”, uma lista de tarefas.

Epa, quem tem chefe pode ter subordinados, certo? E a lista de “to dos” passa a ser cascateada pela empresa, à medida em que as equipes vão sendo convocadas para ouvir o que o chefe ouviu do chefe dele. Resultado: a empresa vive sentada, tomando cafezinho, anotando o serviço que precisa ser feito –e que leva muito tempo para ser entregue porque, você sabe, está todo mundo em reunião.

Para quem acha que estou exagerando, admito: estou generalizando, deve ter uma ou outra empresa onde as reuniões são diferentes das descritas. Por outro lado, há prova maior de que as reuniões são uma praga nas empresas do que a falta insistente de salas disponíveis para os encontros? Por mais áreas que existam destinadas a esse fim, nunca tem sala suficiente.

O efeito mais enganoso da reunião é que ela só parece ser produtiva. Como é possível produzir quando uma pessoa tem três, quatro reuniões por dia? Que tempo sobra para ela desenvolver o trabalho? Que tempo sobra para pensar, encontrar soluções, buscar resultados?

E aí vem o efeito mais perverso, justamente o efeito come-tempo. Não existe nada mais matador. Um profissional que vive em reunião, vive esbaforido, sem tempo. Uma pessoa sem tempo costuma ser uma pessoa sem capacidade de ouvir, processar o próprio pensamento. Daí vem a segunda etapa da perda de produtividade, o “briefing” superficial e desamarrado, a encomenda que exige respostas para perguntas que não foram sequer formuladas. Assim como as reuniões, o “briefing” mal feito também cascateia. E o resultado é mais perda de tempo com o “briefing” , a refação do “briefing”, o temido alinhamento da expectativa.

Voltando ao começo do texto: o home office. Claro que as reuniões continuam por meio virtual, nem daria para ser diferente. Mas, acredito, com o distanciamento físico parece que elas evidenciam seus defeitos. Certamente, as pessoas já notaram que encontros em vídeo levam menos tempo que os presenciais. O que me faz pensar que, talvez, haja aí uma esperança. Quem sabe comece uma mudança na cultura das reuniões? Quem sabe os executivos consigam desmamar delas?

Tem muita coisa importante para mudar no modelo de trabalho em grandes empresas. Os próprios conceitos de trabalho e de empresa podem estar sendo revisados neste momento. Mas, qualquer que seja o novo modelo, nele a cultura das reuniões não deveria sobreviver.

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A pergunta que eu não fiz à minha mãe quando ela se tornou avó http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/04/a-pergunta-que-eu-nao-fiz-a-minha-mae-quando-ela-se-tornou-avo/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/07/04/a-pergunta-que-eu-nao-fiz-a-minha-mae-quando-ela-se-tornou-avo/#respond Sat, 04 Jul 2020 07:00:45 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=1006

Recebo da minha sobrinha uma foto antiga pelo WhatsApp. Já descolorida, mostra minha mãe e meu filho mais velho. Estão lado a lado, de cócoras, com as mãos sobre as bordas de um cocho d’água, um pneu de trator cortado ao meio. Galinhas ciscam ao fundo. A bunda de um porco enorme, branco e preto, está em primeiro plano, o que deixa a foto meio engraçada. No fundo, a única cor que preservou a vivacidade vem de uma grande árvore.

Onde eles estavam? Quando foi isso? Eu não me lembro.

Até receber o registro dela, aquela cena seria considerada uma impossibilidade. Não havia visitado minha família apenas quando meu filho era bebê de colo? E só voltado a vê-los, no Maranhão, cinco, seis anos depois? A foto, tão insignificante na sua banalidade, estava impondo outra história. Subversiva, surpreendente.  

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É uma situação estranha. Um pedaço do passado que se perdeu na minha memória e que voltou porque alguém o encontrou, no fundo da gaveta, na forma de uma fotografia. Voltou não para me assombrar, mas para me deixar perplexa, como quando se ganha um presente inesperado no meio de um dia comum. Desembrulhei a foto, camada por camada, com o maravilhamento de quem percebe que, dentro do pacote singelo, existe algo de que você vai gostar muito.

Olho atentamente para o rosto do meu filho, um pouco contrariado, parece. O clique deve ter interrompido sua intenção de colocar a mão na água do cocho. Um movimento suspenso, assim como o tempo.

Seu pequeno corpo, só de short, mostra a barriga gordinha das crianças pequenas. Três, quatro anos de idade, calculo. Ao seu lado, uma mulher mais jovem do que eu sou hoje, da qual eu também tinha me esquecido porque minha mãe, a atual, a substituiu completamente. (Quem se lembra da mãe quando ela era jovem? Somos implacáveis na atualização da imagem dos pais, mas absolutamente condescendentes nas nossas. Aos 40, 50 e 60, não nos sentimos duas décadas mais novos?)

Minha mãe veste calças compridas, salmão apagado. O cabelo não tem fios brancos ainda, e ela já é avó. Se fôssemos estranhas, eu diria a ela que parecia muito jovem para ter um neto. E ela responderia que, imagina, até que tinha demorado para vir o primeiro. Eu também perguntaria como ela se sentia sendo avó –pergunta que, aliás, nunca fiz, embora agora me pareça tão obviamente interessante. Perguntei como dar banho no bebê, que chá fazer para a cólica, mas nunca quis saber dos sentimentos dela diante de um neto. Claro, estava muito mais preocupada com meus sentimentos diante de um filho.

Fico curiosa e com vontade de perguntar àquela mulher da foto como estava se sentindo perto de um neto que via tão poucas vezes, que morava tão longe. Estava com medo de que ele não gostasse de seu quintal? Ou tinha certeza de que, sendo criança da cidade, ele tinha se encantado? Eu queria conhecer aquela mulher, queria conversar com ela.

Da primeira visita que fiz a minha família, um ano após ser mãe pela primeira vez, eu me lembro muito bem. Eles tinham acabado de mudar radicalmente de vida, deixando suas antigas e citadinas profissões para estrear na lavoura, em uma cidade que fica a mais de 3.000 quilômetros de distância da minha. Fazenda sem luz, sem água encanada, casa com telhado de sapé e chão batido. Da rodovia mais próxima até a sede, duas horas de viagem em estrada de terra e de areia. Quando furava o pneu, duas horas e meia. Quando furavam dois pneus, seis horas no mínimo, considerando que tínhamos que andar até um vilarejo para encontrar o borracheiro.

Naquela ocasião, eu precisava desesperadamente de férias com meu marido, depois de um ano cuidando do bebê. Sem dormir direito, sem sair para dançar ou ir a uma festa. E como tinha festa nos anos 80 em São Paulo! Na minha fantasia, poderia deixar meu filho com a avó enquanto fugíamos para a praia mais próxima. Foi uma decepção que nunca superei, o fato de minha mãe não ter aceitado nossa proposta. Meses depois, já enxergando a situação de forma mais racional, entendi que ela tomou a decisão correta. Seria um risco muito grande manter o bebê –o bebê da filha– em um local tão precário, distante da cidade e de cuidados médicos.

Entendi, mas não superei.

E percebi isso ao olhar para essa foto como se ela viesse de um universo paralelo. Suponho que a mágoa com minha mãe eclipsou da minha memória o fato de eu ter, sim, visitado a família pouco depois daquela vez em que me foi negada a oportunidade de desfrutar de uma segunda lua de mel, já que a primeira, por falta de opção, foi passada em um motel barato.

Coisas estranhas acontecem quando nossas emoções batem à porta do hipocampo, o centro da memória no cérebro. Coisas estranhas acontecem quando o passado permite ser reescrito. É uma história pequena, boba. A história de uma foto com porcos, galinhas, uma árvore, uma mulher e uma criança. Minha criança. Minha mãe redescoberta. E, enfim, perdoada.

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Corrida aos shoppings em meio à pandemia: nossa única diversão é consumir? http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/06/27/corrida-aos-shoppings-unica-diversao-e-consumir/ http://nos.blogosfera.uol.com.br/2020/06/27/corrida-aos-shoppings-unica-diversao-e-consumir/#respond Sat, 27 Jun 2020 14:36:13 +0000 http://nos.blogosfera.uol.com.br/?p=981

Há muito tempo, em outra vida, o shopping center era um programa obrigatório de fim de semana. Dá até vergonha de admitir, mas frequentei muito mais o shopping do que o cinema, o museu, o teatro e o parque. Acho que gastei o valor de uns dois carros em suas lojas.

Aos sábados ou aos domingos, surgia uma sensação difusa de que alguma coisa era extremamente necessária na minha casa, no meu guarda-roupa. Na época, dizia-se que compras e outros mimos eram uma forma de reparação pela semana exaustiva de trabalho. Auto-indulgência. “Eu trabalhei tanto que mereço” aquela roupa cara, aquele jogo de cama de mil fios, aquele eletrodoméstico.

Saía do shopping, horas depois, carregando sacolas pesadas e com a sensação enganosa de que, apesar de estar mais pobre, eu estava mais leve: achava que tinha resolvido vários problemas, havia comprado soluções. Toalhas novas prometiam banhos mais confortáveis. Roupas caras prometiam estilo. Sapatos, minha perdição, prometiam um motivo para começar a segunda-feira com entusiasmo na empresa.

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Demorou tempo demais para eu perceber que tinha menos alegria do que trabalho ao desempacotar tudo. Que a promessa de felicidade ao sair de casa se transformava em cansaço e vazio. Quantos quilômetros foram gastos em uma imensa caixa fechada, sem abertura para o tempo lá fora? Quanto estressei o cérebro com o excesso de estímulos naqueles labirintos projetados para não ter atalhos?

Cores, mensagens das lojas, cheiros, barulhos: olhando agora, penso que eu vivia em um parque de diversões sem diversão. Hoje, entrar em um shopping me dá uma mistura de emoções. Ansiedade. Desejo. Claustrofobia.  Acho que, como ex-dependente de shopping, chegar perto da droga me causa fascínio e repulsa.

Tudo isso para falar que entendo a corrida aos shoppings em tempo de pandemia. Entendo, não fico chocada com o comportamento das pessoas que, mesmo diante do risco de se contaminar com uma doença grave, não resistem ao apelo do shopping. O lazer das pessoas que vivem em metrópoles é ir ao centro de compras, certo?  Quem já viu pais levarem seus filhos para brincar de bola ou de bicicleta na Decathlon sabe do que estou falando.

As pessoas que correm para os shoppings estão sofrendo com a abstinência das promessas da vida encantada das compras, eu acredito. Nossas estruturas cerebrais, suponho, reagem à visão de objetos que desejamos com uma inundação de neurotransmissores do prazer. Desejamos ter, queremos possuir coisas que consideramos bonitas –não nos contentamos apenas em apreciá-las. Elas, acreditamos, nos fazem pessoas melhores. Mais admiráveis, mais invejáveis, mais dignas. Sim, porque, nessa altura, alguém ainda duvida de que o verbo consumir seja o que melhor define o propósito de vida do ser humano contemporâneo?

O desejo, em si, é algo próprio da vida, claro. Sem ele, não nos levantamos da cama, não sobrevivemos nem garantimos a continuidade da espécie. O problema é que estamos sendo enganados –ou estamos nos enganando. Dizem os sites de etimologia que a origem da palavra consumo não tem a ver com sobrevivência, pelo contrário. O significado em latim da palavra consumo –consumere– quer dizer esgotamento. E o que esgota, acaba.

Não seria bom se, ao final desta pandemia, nós conseguíssemos passear com nossos desejos para muito além dos shoppings?

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