Eu amo esta cachorra
Nina foi atropelada.
Estraçalhada sob o pneu de uma caminhonete, uma de suas patas traseiras perdeu metade da carne, das cartilagens, e dos músculos. Ricardo, o veterinário, acredita que ela voltará a andar com quatro patas. Não vai ser uma atleta, mas conseguirá se movimentar muito bem.
A cachorra dos meus filhos – em guarda compartilhada com meu irmão – reconhece a sua linhagem ao subir e descer montanhas em busca de uma vaca. Desde o acidente, torço para que essa alegria não seja tirada dela e que suas corridas sobre os pastos não percam nem elegância nem rapidez.
Um vizinho, uma vez, a definiu como sendo da classe de cachorros sérios. Ela estava no mundo para trabalhar, não tinha nascido para sacolejar por aí, como o Zé, seu primo bon vivant. Para Nina, uma border collie, a vaca é o rebanho que ela precisa pastorear e para quem precisa latir incansavelmente. (Para a vaca, Nina deve ser um pé no saco.)
O acidente foi um filme lento e doloroso: Nina sendo arrastada pela velha caminhonete por poucos e infinitos metros enquanto seus olhos se arregalavam de pavor. Gritei e corri em sua direção. Nós duas, em choque, conseguimos nos arrastar até a beira da estrada, onde aguardamos a chegada do veterinário. Chegamos rápido à casa do Ricardo, que por sorte morava ali perto, e a deitamos sobre a bancada do consultório. Nina pingava sangue; o vermelho cobrindo o branco dos azulejos da bancada. Sangue nas patas, na barriga, nos pelos, na minha roupa e nas minhas pernas.
Em geral muito fria diante de machucados, nesse dia eu fiquei destruída. Enquanto ela era examinada, comecei a sussurrar em sua orelha coisas que dizemos às crianças: vai passar; estou aqui com você; vai passar. E quando ela me olhou, cheia de dor, eu comecei a chorar lágrimas gordas, velozes e desequilibradas. Até que o veterinário me pedisse que segurasse as patas dianteiras da Nina, eu solucei descontroladamente.
Na nossa convivência diária, Nina lambia a minha mão, corria para me proteger de algum perigo imaginário (ao ouvir vozes altas nas altercações rotineiras com os filhos). Ia e voltava – nos passeios – apenas para checar se eu estava próxima. Até então, achava que como a vaca, eu fazia parte do seu rebanho.
Não sei se o amor que temos pelos cachorros é igual ao que temos pelos seres humanos. Naquele momento, porém, com medo de perder a Nina, eu me deixei levar por um sentimento forte e desesperado que identifiquei como o mais nobre dos amores. Percebi que amava aquela cachorra com a mesma intensidade que ela vinha me amando desde que chegou em casa.
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