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Brenda Fucuta

Compro mais memória desde que ela me lembre do que é importante

Universa

10/02/2018 05h00

Fico imaginando um mundo onde a tecnologia funcione a favor da minha memória (Getty Images)

Toda vez que o sistema em nuvem da Apple, o i-Cloud, diz que devo comprar mais memória, sou tomada por dois sentimentos conflitantes. Um, de irritação –aquele tipo de frustração que a gente tem quando o cartão de crédito estoura o limite. Sem um upgrade no meu plano de dados, não posso arquivar minhas fotos, guardar meus documentos etc. Em termos de tecnologia, eu me sinto uma sem-teto vagando no condomínio dos megadados. Uma desmemoriada.

O outro, sentimento, porém, é de esperança.

Se a coisa continuar assim, evoluindo para nos fornecer mais e mais capacidade de armazenamento, quem sabe daqui a alguns anos nosso problema de falta de memória analógica não se resolverá?

Por exemplo, uma amiga workaholic que vive chegando atrasada em suas aulas de hidroginástica nunca mais passará pelo vexame de colocar a calcinha no lugar da touca de cabeça.

Outra amiga não repetirá a gafe extrema de chegar ao casamento da filha da colega de trabalho com um dia de atraso. Hora certa, roupa certa e até, presente certo –uma cota na viagem da lua de mel no Havaí. Mas dia errado e uma cara de espanto da colega de trabalho que veio atender à porta com uma baita ressaca.

Juro, são histórias verdadeiras de gente sã –pelo menos, até o momento, nenhuma delas foi diagnosticada com desequilíbrio neurológico mais grave.

Nesse mundo encantado que antevejo, a gente não vai esquecer o número do próprio celular, vai lembrar de onde deixou os óculos e recordar do nome dos conhecidos –ai, que coisa terrível não saber em qual quadrante situar a pessoa sorridente que te cumprimenta na rua ou em uma festa!

Talvez as pessoas meio repetitivas recebam um alerta quando estiverem prestes a contar a mesma história para o mesmo interlocutor e, maravilha das maravilhas, todos se lembrem dos nomes do diretor, do ator principal e do ator coadjuvante e até do título daquele filme que vimos na Netlfix e queremos indicar para os amigos, em uma conversa à mesa de bar.

Fico imaginando um mundo onde a tecnologia funcione a favor da minha memória, e não contra. A favor é investir na recuperação das lembranças individuais. Contra, para mim, é compartilhar minha memória com o resto da humanidade –o arquivamento em nuvem. Contra também é me lembrar, irritantemente, do aniversário de todos as pessoas adicionadas no Facebook.

Espero que um dia os magos do Vale do Silício entendam que a nuvem, como serviço de extensão da memória, é um produto ruim. A recuperação da memória individual –embora pareça um sonho – tem potencial de se transformar em uma mercadoria muito mais valiosa. Quando, e se isso acontecer, acho que não terei nenhum problema em pagar mais pelo i-Cloud –ou seja lá onde minha memória esteja perdida.

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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