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Brenda Fucuta

Carta à família e aos amigos das mulheres trans executadas em 2020

Brenda Fucuta

15/08/2020 04h00

(Artem Maltsev/Unsplash)

Peço licença para escrever esta carta aberta a vocês. Não os conheço, não sou sua amiga nas redes sociais. Imagino que vocês também nunca tenham se encontrado, já que moram em cidades diferentes: São Paulo, Florianópolis, Milão, Embu-Guaçu, Salvador, Recife, Dourados… Mas estou me dirigindo a todos porque algo terrível os une, algo que vem me assombrando também.

Nos últimos meses, vocês perderam filhas ou amigas, netas ou irmãs. Katarina, Isabelle, Rebeka, Manuela, Lorena e Kethley –e dezenas de outras mulheres– foram espancadas e machucadas até a morte. Isabelle, de 27 anos, morreu, esfaqueada, 15 dias depois de ser surrada por um grupo de homens. Na rua. À luz do dia, como dizem.

Kethley e Lorena também apanharam, foram cortadas e sangraram publicamente, sem que ninguém interferisse. O corpo de Katarina, de apenas 22 anos, exibia perfurações. Assim como o de Rebeka, abandonado ao lado do rio. E o de Natasha, embrulhado em um lençol. Manuela, de 48 anos, que morava em Milão, foi esfaqueada 80 vezes. Puro horror.

Até agora, meados de agosto, foram registrados 89 crimes desse tipo nas cidades brasileiras, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Dez por mês. Dez vezes a cada 30 dias em que nos mostramos bárbaros, possuídos pelo ódio ao que nós é estranho. Um fascínio e uma repulsa por essas mulheres que, ao nascerem com corpos masculinos, subverteram a ordem do mundo que alguns consideram organizado, preto no branco, sem meio tons. E sabemos que a vida é tudo, menos reta, previsível e certa.

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Suas filhas tiveram vidas curtas e mortes dolorosas. Foram julgadas e executadas por crimes que não cometeram. Buscar a verdadeira identidade, usar o corpo da maneira que bem entenderem –o corpo que é só seu, de mais ninguém– são atos de liberdade, não são crimes.

Quanto a nós, peço perdão. Nada justifica que estejamos anestesiados diante desse tipo de crime –que, aliás, já está previsto em lei. Nenhum tipo de crença religiosa ou de costumes deveria legitimar espetáculos pavorosos de tortura pública. Nada nos dá o direito de criar filhos capazes de cometer tais barbaridades. O seu sofrimento merece nossa compaixão. A execução dessas mulheres merece a nossa revolta. Ninguém deveria morrer tão cedo.

Espero e rezo para que isso não se repita. Temos que lutar, preparar o mundo para que que nossas filhas e amigas possam ter vidas longas. E, quando morrerem, que seja de forma digna.

 

São Paulo, fevereiro de 2020 Katarina Ariel, 22 anos, foi executada no meio da rua e seu corpo foi encontrado com marcas de facas.

Florianópolis, Santa Catarina, fevereiro de 2020 Isabelle Colst, de 27 anos, morreu após ser esfaqueada e espancada com um pedaço de pau. Quinze dias antes, foi surrada por um grupo de homens e havia dito a uma amiga que estava com medo de ser atacada novamente.

Dourados, Mato Grosso do Sul, março de 2020 Uma mulher trans de 34 anos foi esfaqueada e estrangulada.

Embu-Guaçu, São Paulo, agosto de 2020 O corpo de Rebeka Araujo, 31 anos, foi encontrado depois de ser abandonado ao lado de um rio da cidade.

Francisco Morato, São Paulo, abril de 2020 Natasha Ferreira Lobato, de 30 anos, foi encontrada em casa, enrolada em um lençol. Seu corpo tinha fraturas e perfurações.

Salvador, Bahia, 13 de junho de 2020 Kethley Santos morreu perto de uma farmácia local, depois de ser esfaqueada e pedir ajuda.  

Recife, Pernambuco, junho de 2020 Uma mulher trans morreu dentro de um ônibus depois de levar uma série de facadas.

Milão, Itália, julho de 2020 Bombeiros localizaram o corpo de Manuela de Cássia, de 48 anos, no apartamento dela. Manuela morreu com mais de 80 facadas. Ela morava na Itália havia muitos anos.

 

 

 

 

 

 

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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