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Brenda Fucuta

Lavando louça, nossa classe média enfim chega ao Primeiro Mundo

Brenda Fucuta

16/05/2020 04h00

Foto: Kelly Sikkema

Grande parte dos brasileiros inveja o estilo de vida do Primeiro Mundo. Mas não inveja tudo, né? Uma das coisas das quais não abrimos mão é do trabalho doméstico terceirizado, coisa rara na classe média dos Estados Unidos e da Europa, por exemplo. Lá, quem tem empregado doméstico tem muito dinheiro – e paga mais do que nós para faxineiras, copeiras, motoristas e jardineiros. Que tem menos, se vira. Limpa quando dá, bota os filhos na roda.

Aí, veio a pandemia e o mundo ficou de cabeça para baixo. Está até engraçado ver homens e mulheres que nunca tinham entrado na área de serviço terem que abrir um tutorial no Youtube para entender como funciona a máquina de lavar a roupa. As amigas trocam dicas de limpeza – bicarbonato de sódio com vinagre virou o hit da temporada. Adultos estão aprendendo a cozinhar e a lavar a louça, coisa que muitos nunca fizeram na vida. Deu para sentir o gostinho do Primeiro Mundo?

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O lado nada engraçado é o outro lado. Algumas faxineiras estão recebendo o auxílio emergencial, outras estão recebendo a diária mesmo sem trabalhar. Mas boa parte está sem ganhos desde o começo da pandemia. Simplesmente foram descartadas, sem dó nem piedade. Uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva há um mês já apontava que quatro entre dez empregadores não pagavam suas faxineiras enquanto elas ficavam em casa. Dois em dez continuavam aceitando que elas trabalhassem normalmente. Se a pesquisa fosse atualizada, tenho certeza de que teria muito mais faxineira de volta ao serviço.

Eu sei que tem empregador que também perdeu seus ganhos. Também existem pessoas – como muitos idosos – que não conseguem mais cozinhar e limpar a casa, precisam de alguém dando o apoio. Sempre há uma justificativa para aceitar as duas alternativas miseráveis que se apresentam para as faxineiras na pandemia: ou elas ficam sem trabalho ou elas se expõem ao vírus porque não podem ficar quietinhas, isoladas, como muitos patrões.

Li, recentemente, em uma reportagem da rede britânica BBC que o Brasil tem um colega nessa situação, a Índia."Algumas celebridades de Bollywood, inclusive, postaram vídeos, no Instagram, cozinhando, limpando e lavando louça." Lá, 4 milhões – mas pode ser muito mais – fazem o trabalho doméstico dos ricos e da classe média. Aqui, só para nos situar, são mais de 6 milhões de domésticos na estimativa da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2019. A Índia tem mais de bilhão de habitantes, o Brasil mal ultrapassa 200 milhões.

A BBC dizia que, no começo de maio, o governo indiano tinha decidido estender o lockdown por mais tempo para conter o contágio. Mas, surpreendentemente, liberava o trabalho dos domésticos. Apenas três semanas de quarentena para eles, dizia a reportagem. A medida levantou um debate ético. Empregadas, que ganhavam muito pouco, estavam passando fome. Queriam voltar ao trabalho. Mas por que os ricos deveriam ficar em casa enquanto os pobres tinham que ir para as ruas? No caso de uma doença perigosa, muitas vezes mortal, é correto aceitar essa diferença de tratamento?

Por mais atrapalhado que esteja sendo o processo de distribuição do auxílio-emergência, acredito que essa seja a única saída aceitável durante a pandemia. A sociedade – nós – precisa, sim, pagar a conta para quem não pode comer durante esse período. Se queremos ser minimamente decentes, está na hora de repartir o pão. E deixar de acreditar que alguns merecem privilégios – e outros, não.

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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