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Brenda Fucuta

Quebraram o vidro do meu carro e invadiram meu paraíso

Brenda Fucuta

22/02/2020 04h00

Foto: Alejo Reinoso/Unsplash

Era uma quarta-feira danada de quente quando decidi buscar um tapete que havia comprado pela internet. Não quis esperar os cinco dias úteis para a entrega em casa. Vamos?, perguntei para uma amiga, que morava no caminho. Hora do almoço e, por acaso, as duas estavam com o dia meio livre. Fomos.

O metrô seria mais rápido, mas preferimos o carro para viajarmos fresquinhas no ar-condicionado. São Paulo marcava 29 graus, o mundo lá fora fervia por causa das compras de Carnaval, mas nós estávamos sossegadas na nossa bolha, olhando pelas janelas os pedestres que carregavam suas grandes sacolas.

"Até que não foi difícil, né?", comentei. Entramos e saímos do centro da cidade, atravessando um pedacinho da 25 de Março, o maior shopping ao ar livre do país, sem passar calor, sem entrar em filas, sem contato com a multidão. Estávamos protegidas pelo dinheiro: carro, estacionamento na porta da loja, gorjeta para o rapaz que carregou a compra. Voltando felizes para casa com dois tapetes – minha amiga aproveitou para comprar um também – no banco de trás do carro. Ainda dava tempo de pegar o fim do almoço com a família.

Paramos no sinal e nos preparamos para entrar à direita conforme o Waze indicava, bem grandão, na tela do celular da minha amiga. Estava ótimo para enxergar o aplicativo porque o celular se dependurava em um daqueles enormes e monstruosos suportes que se fixam no para-brisas (meu filho havia comprado com o argumento de que eles eram funcionais: "Todos os motoristas do Uber usam"). Vidros fechados, temperatura gostosa, conversa solta. Enquanto eu tagarelava, nem me lembro o assunto, uma sombra passou pela direita, atravessando o vidro da janela do carro, arrancando o celular e seu suporte. Tão veloz que não consegui me dar conta do que tinha acontecido até que as placas craqueladas do vidro caíssem nos colos e no chão. Tão violento que ficamos paralisadas, as duas, enquanto a sombra desaparecia, a pé. No carro, ainda repercutia o estrondo do pedaço de ferro no vidro.

Tínhamos sido roubadas.

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Minha amiga, que ficou sangrando com pequenos cortes no rosto, perdeu um celular. Eu perdi um vidro de carro. Só isso já dá muita raiva, uma sensação de impotência diante de algo muito injusto. Dá tanta raiva que não tivemos nenhum tipo de empatia por um cara que correu risco de apanhar, de ser preso ou de ser linchado por causa de um aparelho de celular que ia valer muito pouco no mercado em que ele opera. Tanta raiva que nem brincamos o jogo do contente: ah, podia ter sido pior… (E, de fato, podia. A cabeça da minha amiga estava no caminho do vidro e do ferro.)

Mas o que a gente perdeu mesmo, passada a raiva e a perplexidade, foi algo sinistro. Perdemos nossa bolha. Como qualquer um que é roubado, especialmente de forma violenta, perdemos o privilégio de viver em uma zona de conforto e, como consequência imediata, perdemos a sensação de segurança. Tínhamos sido arrancadas do nosso pequeno paraíso, onde as balas perdidas, os homicídios e outras barbaridades não existiam. Até que os "outros", os zumbis, apareceram no nosso seriado.

Faz pouco tempo, escrevi que os "fodidos" (expressão utilizada pelo escritor Rubem Fonseca para se referir aos perdedores, aos que ficam à margem, sempre) estavam se levantando, agressivos, contra um sistema social injusto e desumano. Quando isso acontecesse, eles iam cobrar a conta de quem estivesse pela frente. O que aconteceu nesse pequeno episódio da vida urbana apenas materializou os personagens do meu texto no meu cotidiano. Saí da bolha para me juntar a milhões de outros brasileiros que estão perdendo coisas muito mais importantes do que um vidro e um celular todos os dias.

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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