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Brenda Fucuta

Quem acabou com a Victoria’s Secret foram as Kardashians

Brenda Fucuta

23/11/2019 04h00

As angels Karolina Kurkova, Gisele Bündchen e Adriana Lima (Jason DeCrow/AP Photo)

Logo que foi anunciado o cancelamento oficial dos desfiles da marca de lingerie Victoria's Secret, muita gente enxergou ali o fim de uma era. Não faria mais sentido persistir na manutenção de um desfile milionário de mulheres magérrimas, seminuas, para vender calcinha, sutiã, hidratante e perfume a clientes que começam a perceber que a objetificação da mulher não é uma coisa legal. (Objetificar = tratar um ser humano como um objeto.) Será que foi isso mesmo? O feminismo matou o desfile?

Assisti a um Victoria's Secret Fashion Show há muito tempo, no começo do século, em Nova York. Foi pela TV porque o show era tipo final de novela, noite do Oscar, campeonato de futebol. As modelos andavam pela passarela, uma após outra, com lingeries cada vez mais sensacionais. Até que chegava a apoteose: a entrada da mais top das tops vestindo uma fantasia com renda, transparência, plumas e…. asas. Todo show terminava da mesma forma. As modelos que faziam o fechamento eram chamadas de angels (Gisele Bündchen, Adriana Lima e Alessandra Ambrosio, brasileiras, faziam parte do time).

Achei bonito, mas –sinceramente– um carnavalesco brasileiro faria muito melhor. Assim como seus doces perfumes e hidratantes, os shows da marca também me pareciam mais ingênuos do que eróticos, mais românticos do que safados, mais enjoativos do que excitantes. Posso estar exagerando, mas é muito possível que seus megashows tenham morrido de falta de dinheiro e de tédio. Discordo da tese de que foi o feminismo que os assassinou. Quem acabou com as angels foram as mulheres da família Kardashian.

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As Kardashian fazem parte de uma dinastia totalmente pós-internet. Kim, a primeira Kardashian famosa, e suas irmãs, Kourtney, Khloé, Kendall e Kylie, são celebridades do Instagram e só ficaram ricas porque, antes, ganharam milhões de seguidores. E por que ganharam? Porque postavam –e postam– fotos de seus corpos em poses inimagináveis. Seus corpos, aliás, são inimagináveis, com curvas e abundâncias impossíveis em seres humanos normais.

Elas inventaram as "belfies", as selfies dos bumbuns. (Se não inventaram, levaram a fama.) Inventaram o bico de pato, aquela boca que parece ter muitos quilos de botox, as jogadas de quadril e um repertório de sensualidade que virou o padrão estético das redes sociais.  Com as Kardashian, as adolescentes aprenderam a ser tão sexies nas fotos que, perto delas, as angels parecem bonequinhas havaianas dançando no console do carro.

Uma escritora americana, Peggy Orenstein, estudando o comportamento das adolescentes na internet, diz que todas essas poses são descendentes diretas do gestual das atrizes pornô. Faz sentido. De repente, toda foto de menina tem um dedo na boca, um girar de corpo que mostra rosto e bumbum ao mesmo tempo, lábios semiabertos. As angels ficaram ultrapassadas, a sensualidade do Instagram está em outro patamar.

Acho curioso que essas coisas convivam. De um lado, as adolescentes tomando consciência de que têm os mesmos direitos do que seus colegas meninos, de que são donas de seu corpo, de que não são culpadas pelo assédio que recebem. De outro, corpos femininos mais objetificados do que nunca nas redes sociais. Acabei de ver um filme em que três mulheres de gângsteres nos anos 70 têm que rodar a baiana e assumir o papel dos maridos para sobreviver. Numa conversa com os filhos, uma dessas mulheres diz que a beleza não tem importância, é apenas uma arma para se conseguir o que quer.

Talvez seja assim que as mudanças funcionem. Primeiro, a gente toma conhecimento do que podemos, do que somos capazes. Depois, a gente escolhe como usar esse conhecimento. E, assim, caminhamos. Um passo pra frente, meio para trás e muitos para o lado. Assim como as angels, as Kardashians passarão.

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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