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Brenda Fucuta

Pedidos de desculpas no trânsito são tão raros que até assustam

Brenda Fucuta

16/06/2019 04h20

Jose Carbajal/Unsplash

Dentro de um carro, diante do volante, muitos de nós nos tornamos monstruosos. Você já ouviu isso em algum momento da vida, nas diversas notícias sobre estudos de comportamento no trânsito. Mas, principalmente, você já viu ou sentiu isso. Na semana passada, eu estava andando, a pé mesmo, quando parei diante de uma dessas violências que são corriqueiras mas, ainda sim, nunca deixam de me impactar e paralisar.

Alguém xingava outro alguém que não tinha dado a seta para virar seu carro. Era um linchamento verbal, uma desclassificação virulenta – não do motorista, mas do ser humano. "Idiota, vai tomar…., filho da …., corno."

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Existem muitas hipóteses para explicar este retorno à barbárie quando estamos no trânsito. Eu imagino que uma boa explicação seja a seguinte: dentro de um carro, nos transformamos em um tanque de guerra. Somos velozes, fortes, letais. Somos superpoderosos, nos integramos à máquina. Homens de ferro, transformers.

O problema é que essa metamorfose, essa fusão com a potência de um veículo, acontece sem nenhum treinamento – não estou falando da auto escola, mas de treinamento emocional, de graduação em convivência respeitosa. E todo mundo que dirige sabe que o carro é uma arma perigosa.

Então, o que acontece quando um homem de ferro imaturo é contrariado? Ele parte para cima do outro. E quando ele é obrigado a diminuir a velocidade superheroica porque tem uma fila de homens de ferro – muito menos habilidosos – na frente dele, empatando o trânsito? Ele empurra, pressiona e buzina. Quando outro homem de ferro comete um deslize? Xinga, persegue, às vezes, mata.

Já fui perseguida por carros que não gostaram de algo que fiz no trânsito. Dedos foram mostrados, minha aparência foi invocada como palavrão: mulher, velha, japonesa. Tenho tentado impedir que estas coisas me atinjam, me violentem, mas não é fácil. Minha tendência é querer enfrentar os bullies, os valentões porque, imagino, me sinto também poderosa, confundindo o que sou eu com o que é a máquina.

Por isso, quero contar meu choque diante de algo inédito na minha experiência de trânsito. Aconteceu logo depois da sessão de xingamentos que relatei no começo do texto.

Perto de casa, eu estava dirigindo, a 40 km por hora, quando outra motorista avançou seu carro sobre o meu ao sair de uma vaga na rua. Depois de ter freado, acionei o modo vingativo, me preparando para buzinar e xingar a motorista. Mas fui pega de surpresa quando ela, uma mulher como eu – não um monstro –, veio aproximando seu carro do meu. Por um segundo, achei que uma briga ia começar. Mas, ao chegar à minha janela, ela disse: "Eu errei, me desculpe."

Simples assim.

A motorista partiu e eu também voltei a dirigir. Atônita. Feliz. Pacificada. Uma coisa muito rara tinha acontecido. Uma pessoa tinha decidido descer do transformer para se tornar humana de novo e me pedir desculpas.

Choque de humanidade: é bom e eu recomendo. Vou tentar repetir o gesto dela. Quem sabe a moda pega?

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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