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Brenda Fucuta

O bullying é assunto de escola? Ou de todos nós?

Brenda Fucuta

12/04/2019 04h00

Foto: Kat J/Unsplash

Há poucos dias, uma turma de privilegiados adolescentes, alunos de uma escola de elite de São Paulo, o Colégio Santa Cruz, recebeu suspensão por prática de bullying. A suspensão dos jovens, do terceiro ano do ensino médio, foi o desfecho de uma história de exclusão e perseguição a um colega da turma. Eles tinham acabado de voltar de um acampamento, onde a humilhação ao colega, que acontecia desde o primeiro ano do ensino médio, atingiu seu ponto máximo. Depois do acampamento, o colega se transferiu de escola. O colégio, por sua vez, decidiu punir seus estudantes, gente que tem sobrenomes importantes – da política, do mercado corporativo, da academia. Gente que, em dois anos no máximo, estará sentada em cadeiras de faculdades.

Grupos de mães no WhatsApp não falaram de outra coisa durante a semana. Algumas criticavam os jornalistas por divulgar um assunto que julgavam ser "um tema sensível" e de interesse da escola apenas. Outras se perguntavam como aquilo podia ter acontecido naquela escola e qual a responsabilidade deles, pais, com a situação. Diferentemente de outros colégios de elite, o Santa Cruz tem uma tradição humanista, um compromisso com a ideia de formar alunos com consciência cidadã, respeitosos dos direitos humanos.

A notícia da suspensão foi assunto dos grupos – de mães, pais, responsáveis, alunos – e também da imprensa que, aparentemente, está menos chocada com este tipo de acontecimento. Falamos de bullying e de ciberbullying a cada dado divulgado sobre o assunto – em 2017, a Secretaria Estadual de Educação registrou 564 casos de bullying;  em setembro do ano passado, o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, publicou um estudo em que dizia que 17 milhões de alunos entrevistados em 39 países admitiam fazer bullying com os colegas. Finalmente, no massacre de Suzano, a mãe de um dos atiradores afirmou que o filho podia ter sofrido bullying.

As escolas estão divulgando mais o bullying ou os alunos estão praticando mais bullying?

Em 2009, um gigantesco levantamento feito com 18 mil alunos, pais e educadores pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), falava de bullying no ambiente escolar. Naquela época, 10% dos alunos disseram ter visto colegas sendo humilhados repetidamente. As principais vítimas: negros, pobres, homossexuais. Em 2017, quando eu estava escrevendo o livro Hipnotizados, sobre tecnologia e comportamento jovem, entrevistei um menino negro, homossexual, que passou a vida escolar sendo xingado e apedrejado na saída da escola, na periferia de Osasco, na Grande São Paulo. O menino, a quem chamei de Guilherme no livro, ocupava o pior quadrante possível da matriz de riscos sociais: negro, pobre, homossexual. Rejeitado pela família e pelos pares – os colegas de escola –, ele felizmente foi abraçado por um projeto social, onde encontrou os primeiros amigos, aos 16 anos de idade. Tanto as humilhações de Guilherme quanto os dados da Fipe mostram o trágico óbvio: as escolas repetem as violências que os brasileiros continuam cometendo contra os grupos mais vulneráveis: negros, pobres, homossexuais. Somos um dos países mais violentos do mundo em quase todas as categorias – contra mulheres, jovens negros, gays, transsexuais. Por que seria diferente na escola? Entre os nossos filhos?

Crianças e adolescentes formam seus valores básicos na convivência com os outros. Se os pais, os tios, os colegas de escola, de igreja e de bairro são preconceituosos, é bastante provável que crianças e adolescentes os imitem

Mas o que acontece quando os outros, os adultos de sua convivência, escolhem uma escola em que o preconceito é combatido, como no caso da escola Santa Cruz? Parece intrigante – e vale uma pesquisa científica – imaginar que a crueldade contra os mais vulneráveis se mantenha mesmo em um ambiente que estimula a convivência respeitosa entre os diversos. Olhamos, estupefatos, para a resistência da ideia de que, para sermos incluídos, devemos excluir. Essa ideia sobreviveu na nossa geração (lembra de Carrie, a Estranha? Lembra do CDF?) e continua vivíssima entre os centennials, os nossos filhos, nascidos no fim do século passado. Como diz o psicólogo José Rogério Lopes, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no artigo Exclusão social e controle social: estratégias contemporâneas de redução de sujeiticidade, a exclusão social, antes ligada aos marginalizados economicamente, agora "não é mais exclusivamente sócio-econômica ou material, mas também simbólica", uma injustiça simbólica que acarreta exepriências de desrespeito, hostilidade e sentimentos de invisibilidade e prejuízo da auto-estima na vida cotidiana. Na minha opinião, continua havendo uma criança e um adolescente escolhidos para representar o "diferente", "o estrangeiro", aquele que não faz parte do grupo, aquele que não queremos ser. No caso de escolas de elite, talvez não sejam os negros e os pobres as vítimas primeiras do bullying. No seu lugar, estão os diferentes. Aqueles que, por alguma razão, exalam um tipo de fragilidade, uma espécie de feromônio ao contrário, que a matilha dos agressores vai farejar, encurralar e atacar. Uso um termo do reino animal – matilha – porque, na adolescência, na difícil e preciosa etapa da formação da nossa identidade, fazer parte de um grupo garante nossa sobrevivência mental, emocional e, no passado, física. Fazer parte de um grupo é uma das principais lições que aprendemos sobre sobrevivência: aprendemos que grupos são mais fortes do que indivíduos sozinhos. E grupos, como todos sabem, seguem seus líderes. Das muitas lembranças que tenho da adolescência: eu, no intervalo da escola, assistindo três colegas xingando um mendigo que tivera a infelicidade de passar na frente do colégio naquele momento. Não fiz nada para impedir, não as critiquei. Pior, eu ri de uma das piadas horrorosas que elas fizeram. Parece pouco, mas isso me assombra até hoje.

Imagine, então, o que é ser adolescente (introvertido, nerd, esquisito, gordinho, feio, nóia) sem a possibilidade de fazer parte da matilha. Como é difícil se manter, de pé, sem ser incluído, sem a sensação de pertencimento. Imagine, para piorar, que este adolescente não só será excluído, como será rechaçado, humilhado e carimbado com o selo "você nunca fará parte".

De quem é a culpa?, se perguntam as mães do WhatsApp. De quem é a culpa? nos perguntamos. Claro que a culpa é nossa. Dos pais, dos vizinhos, dos amigos, dos educadores que toleram o bullying. Talvez seja uma culpa ancestral, fruto de um comportamento que determinava quem era forte, fraco (ou mais adaptável), quem contribuía mais ou menos para a sobrevivência da tribo, 20, 40 mil anos atrás. Talvez a gente ainda não seja capaz de entender que não precisamos mais disso. Não precisamos massacrar alguns para a sobrevivência do grupo, não precisamos continuar acreditando em perdedores e vencedores para manter um sistema social que está prestes a ser reduzido a pó – assim, espero.  

Por outro lado, não acho que apenas reconhecer a culpa coletiva vá nos tirar deste lugar atônito, perplexo. Coisas ruins acontecem, mas coisas boas também

Uma escola que tem a coragem de tomar uma atitude contra a humilhação de um de seus alunos, mesmo correndo o risco de ver sua crise existencial exposta na mídia, é um sinal de coisa boa. Uma família que percebe que o filho ficará melhor em ambiente menos hostil parece uma coisa boa. Bullying acontece porque há omissão. A própria natureza do bullying – violência endereçada, contínua – exige a presença de testemunhas coniventes.

Finalmente, lembro de uma conversa que tive com um executivo bem sucedido que, na infância, havia passado pelo que, hoje, consideramos bullying. "A gente está dando muito importância a isso, exagerando", me disse ele. "Eu ganhei apelidos depreciativos, fiquei de fora de muitas festas, mas sobrevivi. Ganhei casca dura. Isso faz parte do crescimento." Depois da entrevista, ao escrever o livro, eu me perguntei se, de fato, a gente estava valorizando muito as dificuldades que aparecem no caminho nos nossos filhos; protegendo-os demais e deixando-os pouco preparados para a competição dura e injusta que certamente viverão – pelo menos algumas vezes – no amor e no trabalho.

Mas, mesmo considerando que a visão do executivo tenha pontos válidos, continuo achando que não há nada que justifique um comportamento perverso contra uma criança ou um adolescente. Nem mesmo a certeza de que também os culpados sofrerão. "Vai sobrar para todo mundo", me diz a mãe de alunos no Santa Cruz, que estuda os princípios da Justiça Restaurativa, aquela que coloca vítimas e agressores para conversar. "Algoz e vítima sofrem a consequência da violência que viveram juntos", acredita ela. Eu concordo.

 

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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