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Brenda Fucuta

"Tem velho que inferniza os filhos", diz historiadora de 88 anos

Brenda Fucuta

07/04/2019 05h00

Foto: arquivo pessoal

Se por acaso você se encontrar com a historiadora Marina Vaz numa reunião, por exemplo, e quiser ajudá-la a se levantar da cadeira, vai passar um vexame. Ela não só recusará aceitará a gentileza, como vai te olhar de cara feia. Aos 88 anos, Marina prefere não facilitar sua própria existência. "Se a gente deixa de fazer uma coisa, não consegue voltar atrás depois", me explica. "Tem muito velho que se apoia sem necessidade nas pessoas." Marina admite que seu corpo envelhece de forma gentil, diferentemente de muitos outros. Ela anda sozinha, pega ônibus, pula Carnaval. A cada quinze dias, pelo menos, sai de seu apartamento, no Butantã, São Paulo, e viaja com amigos pelas estradas difíceis da Serra da Mantiqueira. Lá, atualmente, a historiadora estimula os jovens vizinhos, estudantes secundaristas, a conversar com os familiares mais velhos. O projeto é uma tentativa de "recuperar as vozes do passado através da história oral", porque quase não há documentos sobre o antigo cotidiano de São Francisco Xavier, vila charmosa ligada à cidade de São José dos Campos, onde Marina mantém segunda residência. Ela representa bem os perennials, os idosos que não cabem nos estereótipos de velhos. Nesta entrevista, que fizemos em seu apartamento, comendo biscoitos de sequilhos e tomando café coado, à moda mineira, Marina conta como é chegar a quase um século de vida com independência e sem medo da morte.

 Você se considera uma perennial?
Acho que sim. Sei que sou velha, óbvio, tenho 88 anos de idade. Mas não me comporto como uma velha tradicional. Sei que sou ponto fora de curva, porque a grande maioria dos velhos não planejou sua velhice. O tempo de vida aumentou e muitos contemporâneos meus preenchem este tempo com doenças, reclamações e dependência de filhos. Não aguento isso. Não gosto de velho chato. A velhice potencializa algumas chatices. Muitos velhos perdem a generosidade, ficam egoístas, acham que o mundo e os filhos têm obrigação com ele. Tem muito velho que inferniza os filhos.

Tem muitos filhos que infernizam os velhos também…
(Risadas). É verdade, uma das minhas filhas tenta me controlar. Sei que as intenções são as melhores, mas o que fazer? Quer saber o que eu como, com qual sapato eu ando. Quando eu vou sair, me dá mil recomendações. Bobagem, enquanto eu estiver lúcida, não quero ser controlada nem cuidada.

"Uma coisa importante explica o fato de eu estar tão bem: eu não tenho marido. Casamento é uma merda" 

Um estudo sobre os perennials afirma que a maneira como se envelhece – boa ou má – depende da maneira como se encara a velhice. Se você é pessimista, envelhece mal e vive menos, em resumo. Você concorda?
Quem envelhece mal é quem não se preparou para isso. Principalmente os homens, que não conseguem aproveitar a vida depois que deixam de trabalhar. As mulheres da minha geração têm sempre alguma coisa para fazer. Eu, por exemplo, cozinho. Planto minhas verduras, hortaliças, na minha segunda casa, em São Francisco Xavier (interior de São Paulo). Eu acompanho o ciclo da vida. Colho, cozinho, como ou sirvo para amigos. Adoro fazer isso. Adoro fazer doce com as frutas das minhas árvores e dar as compotas de presente. Também voltei a bordar, estudar música. E nunca deixei de ler. Além de conviver com a roça, tem uma coisa muito importante que explica o fato de eu estar tão bem. Eu não tenho marido (risadas). Me separei aos 50 anos. Sofri pra burro, mas agora vejo que tive muita sorte. Casamento é uma merda. Absolutamente, eu jamais me casaria de novo.

Sua vida saiu como você planejou?
Não, minha geração não planejava a vida. Fui para a faculdade porque quis, insisti até. Casei nova, tive seis filhos porque naquela época não tinha como evitar. Cuidava das crianças e do meu marido. Criei meus filhos na época da ditadura, pós 68 e aprendi muito com eles. Precisei me mudar duas vezes, acompanhando as transferências que o trabalho do meu marido exigia e deixando meu próprio trabalho para trás. Fui professora em Belo Horizonte e em Curitiba. Perdi um filho, me separei, perdi outro filho. Não, claro que minha vida não saiu como eu queria, nem se eu tivesse planejado. Mas ficou muito melhor quando eu percebi que precisava trabalhar pelo meu espaço. Isso foi importante na época, pouco antes dos meus 50 anos. Depois do divórcio, voltei a estudar, fiz mestrado e doutorado, ganhei uma bolsa da OEA (Organização dos Estados Americanos) para um curso de documentação na Espanha. Lecionei na Escola de Sociologia e Política… Este aprendizado, de que eu precisava do meu espaço, é o que eu mantenho até hoje, na velhice.

Sua vida social é bem agitada. Isso deve contribuir para sua saúde mental.
É verdade. Eu tive amigas intelectuais, muito talentosas, mas que perderam a vida social depois de certo tempo. Estas minhas amigas envelheceram mal, não conquistaram um espaço delas. Ficaram em função de filhos, de netos. Eu não sou refém de nada disso. Gosto de sair com pessoas de todas as idades, inclusive com meus netos de 20 e poucos anos. Tenho uma relação de troca com eles e isso faz bem para os dois lados. Um dia desses, fui com um dos meus netos até a 25 de março para comprar uma fantasia de Carnaval. Fomos de ônibus. Quando eu estava lá, perguntei para ele se o programa não era muito chato. Ele é intelectual, não achei que estivesse se divertindo na 25. Mas ele me respondeu que estava adorando. "Quem tem o privilégio de acompanhar a avó de 88 anos para comprar fantasia?"

Você comentou comigo que este seria seu último Carnaval e que, por isso, queria caprichar…
Ah, acho que eu estava brincando. Faz tempo que falo que vou pular meu último Carnaval. Mas este, de fato, foi importante para mim porque eu queria sair com as cores do LGBTQ, estava farta daquela conversa da ministra Damares, dos meninos de azul e meninas de rosa. Mas esta história do último… É uma piada. Sei que falar de morte é uma dificuldade para a maioria das pessoas, inclusive dos mais velhos. Mas eu não me importo de falar sobre isso. Não tenho medo de morrer. Estaria mentindo se dissesse que não tenho medo de sofrer, mas de morrer, não.

 Sempre foi assim ou teve algum momento que você perdeu o medo de morrer?
Perdi o medo há exatamente 30 anos, em 1989, quando um filho meu morreu. Acho que eu me preparei para a morte junto com ele. Foram dois anos de preparação, ele tinha uma doença terminal, e nós conversávamos muito sobre a morte. Sabíamos que era inevitável. Não me julgo religiosa, mas gosto de pensar no que o budismo prega, na ideia de aceitar a finitude.

 Não teve a ver com sua idade, então.
Quando este meu filho morreu, eu tinha 59 anos e estava começando a envelhecer. Para falar a verdade, eu era uma velha naquela época. Quando fiz 70 anos, era mais nova do que aos 59 (risadas). A sociedade mudou muito, a longevidade mudou. Mas eu sempre pensei no assunto e me preparei.

"Faço questão de andar sozinha. Tomando cuidado, olhando bem o chão pra não cair. Mas sozinha, enquanto for possível"

Quando você começou a planejar sua velhice?
Quando comecei a perceber as limitações. Felizmente, tenho uma memória muito boa, enxergo e escuto bem. Sei que não tenho um perfil físico de uma mulher de 88 anos. Eu ando de ônibus, limpo minhas casas, cozinho, saio, vou a festas. Mas tenho limites. Parei de dirigir aos 83 anos, operei de catarata, uso pouco açúcar. Um dia, perdi o sapato e fiquei ajoelhada, procurando. O joelho doeu… Resumindo, comecei a planejar a velhice quando entendi que precisava viver dentro dos meus limites. E, como detesto ser dependente, passei a economizar para poder estender ao máximo minha autonomia. Sempre fui boa administradora e tive sorte. Mantenho um estilo de vida confortável, mas econômico. Guardo para o dia em que eu não puder me cuidar sozinha e precisar de um cuidador.

 Você não gosta de ser ajudada, não é? Por quê?
Tem muito velho se apoia nas pessoas sem necessidade. Conheço muita gente que fica sentada, pede água pro filho, pede ajuda pra levantar da cadeira. Essas pessoas não entendem que se deixam de fazer uma coisa uma vez, depois não conseguem mais fazer de novo. Por isso, faço questão de andar sozinha. Tomando cuidado, olhando bem o chão pra não cair. Mas sozinha, enquanto for possível.

 O que você pode dizer para pessoas com 50, 60 anos de idade, em relação ao envelhecimento?
Façam um planejamento financeiro, cuidem da saúde e procurem perceber o que vai te fazer bem na velhice. Não coloque sua realização na vida dos outros, nem que os outros sejam seus filhos. Você tem que orientar sua vida para a autossuficiência emocional.

 Você não se enxerga como velha. E como as pessoas te enxergam? Você, como outros idosos, acha que ficou invisível?
Não, pelo contrário. Quando vou a algum lugar, sinto que as pessoas querem me ouvir. E, claro, eu também converso no pé de igualdade, não me inibo, tenho papo para todo mundo. Muitas pessoas mais velhas que eu conheço que sentem rejeitadas. Ficam ressentidas porque não foram convidadas para o casamento, a formatura, o batizado. Acho tudo isso um porre. Prefiro ir ao Carnaval.

Leia também: Os idosos são os novos invisíveis

8 dicas para começar agora a planejar uma velhice tranquila

 

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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