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Brenda Fucuta

Quando seus pais viram seus filhos

Universa

27/04/2018 04h00

(Foto: Thinkstock)

De manhã, ele corre para a rua sem contar para onde vai. Só nos resta aguardar, ansiosos, pelo retorno do seu passeio a pé.

Pelo menos duas vezes por semana ele tenta pegar, escondido, as chaves do carro da família. Quando ele consegue, esperamos que volte inteiro – e sem ter atropelado ninguém. Não respeita as regras da nutricionista e, se bobear, come pastel todo dia. Mesmo sabendo que fritura é veneno para um diabético, como ele. Aos 80 e poucos anos, meu pai virou um adolescente.

Quando foi que isso aconteceu? Quando ele passou a ser cuidado como uma criança, ouvindo broncas e tendo que obedecer os limites impostos pelos filhos?

Não foi de uma hora para outra, mas aconteceu sem que a gente se desse conta que o adulto autônomo que tinha sido o nosso pai estava desaparecendo. Os perigos na direção, os momentos de desorientação na rua, os exames de sangue com resultados progressivamente alterados exigindo uma dose diária cada vez maior de remédios.
– Já tomou seus remédios hoje, pai?
– É a primeira coisa que eu faço depois que acordo. Você sabe disso.
Meu pai não gosta que eu insista na checagem do remédio. Ele carrega sua sacolinha de medicamentos – contra a pressão alta, contra acidentes vasculares, contra a tontura e tantos outros – como o último bastião de sua independência. Algo sobre o qual ele ainda tem controle.

"Tenho direito de fazer só o que gosto, já vivi bastante", é um dos seus bordões. É um argumento que nos desconcerta sempre, seus filhos. Será que temos o direito de, a essa altura, retirar dele suas poucas alegrias? Impedi-lo de dirigir me pareceu uma crueldade. O carro, para ele, representa a antiga potência, algo que o situa no mundo dos adultos. Por outro lado, as chances de que meu pai atropele alguém aumenta a cada dia.

Oferecer apenas refeições saudáveis, com muita salada e pouca fritura, não deixa de ser um exercício diário de estraga-prazer. Tirar o refrigerante dele, depois de um micro-infarto, foi muito pior do que tirar a chupeta de um bebê. Mas, de novo, por outro lado, como evitar um novo problema no coração? Como ajudá-lo a chegar com qualidade de vida aos desejados (e declarados) 100 anos de idade?

Sei que esse tipo de dúvida tem afligido muita gente. Meus irmãos e eu fazemos parte de um grupo de adultos que nasceu na década de 70 – a geração baby boomer – e chega hoje à fase em que, criados os filhos, passa a ter que cuidar dos pais. Com o aumento da expectativa de vida, surge uma imensa quantidade de pais a ser assistidos pelos filhos e esse movimento demográfico, inédito na sociedade brasileira, traz várias perguntas e questões para as quais estamos inventando as respostas.

Por que, afinal, não nos preparamos para este momento? Por que não o estudamos na escola? Não falamos dele quando somos jovens e estamos começando a criar nossas próprias famílias? Talvez porque, como vários em outros assuntos tabus, este – da inversão dos papéis entre pais e filhos – aponte para coisas para as quais não gostamos de olhar. A passagem implacável do tempo, a fragilização do corpo, a chegada do fim. Em vez de nos programarmos para a fase dos cuidados, fingimos que nada vai acontecer até que aconteça.

Sem preparo e sem reflexão, acabamos improvisando. O problema é que a tarefa é complexa, cara e trabalhosa. Exige muito mais do que improvisação. Exige paciência, empatia, solidariedade, amor e humor. São habilidades e sentimentos que não costumam aparecer quando estamos assustados, pegos de surpresa com a chegada dos pais-filhos às nossas vidas. E a preparação para este momento requer muita conversa sobre o assunto. Inclusive com os pais – antes e depois que eles envelhecem. O que gostariam que acontecesse diante das restrições impostas pelo corpo e mente? O que gostariam que não acontecesse? Como imaginam esta fase da vida?

Não dá para garantir que isso nos deixe menos aflitos quando vier a deselegante incontinência urinária. Ou quando você receber a ligação de um estranho, no seu celular, dizendo que encontrou um de seus pais parecendo perdido na rua. Ou quando você precisar pedir ao chefe para ir pra casa no meio do expediente porque seus pais estão confusos. Mas suspeito que falar mais sobre o assunto, sem pudores desnecessários, pode trazer um pouco mais de leveza ao tema. Talvez pudéssemos encontrar soluções melhores – coletivas, até – em vez de usar o improviso.

A velhice merece ser falada.

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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